Um artista que atravessa o tempo. Lido, cantado, declamado e redescoberto, além de engajado nas pautas do presente sem temer o futuro, e sim disposto a construí-lo. Em entrevista ao V&A, Chico César relembra a infância, em Catolé do Rocha, interior da Paraíba, e fala da fase atual da carreira, a qual passeia por sonoridades afro-brasileiras enquanto dialoga com novos nomes do MPB. Com 58 anos de idade e quase três décadas na carreira fonográfica, Chico flerta com a literatura, é autor de poesias, e abre possibilidades para experimentar novas linguagens: “só o tempo dirá”.
O POVO - Lá atrás, em 1991, você foi convidado para uma turnê na Alemanha e foi o que te levou de vez para a arte, deixando o jornalismo. Mas a música já te acompanhava antes. Como ela estava na sua vida no início, ainda em Catolé do Rocha e depois em João Pessoa?
Chico César - Penso que minha formação musical começa comigo escutando os aboios e os cantos de reisado do meu pai e a minha mãe cantando os hinos da igreja católica. Começa bem aí. Aí depois aí vem as bandas de pífanos, as chamadas bandas cabaçais, passando na porta de casa. Os improvisadores com viola ou com pandeiro. Os repentistas nas feiras. E depois eu trabalhei dos oito aos quinze anos numa loja de discos. Aí sim tinha tudo, né? Tinha desde a banda de pífanos de Caruaru até Kraftwerk, grupo de rock industrial alemão, que hoje é conhecido como música eletrônica, mas naquele tempo (os anos 1970) chamava-se rock industrial. No meio disso tudo tinha Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Beatles, Queen, Luiz Melodia… um pouco de tudo. Tinha também discos de Ray Conniff, que era uma música orquestral. Acho que é daí que vem essa diversidade que o meu trabalho abraça. Tem a ver com a minha escuta, que era uma escuta que abraçou bastante coisa ainda bem jovem. A minha segunda infância foi toda aí, ou seja, dos sete aos quatorze, entrando na adolescência até os quinze foram oito anos de trabalho nesse lugar e foi fundamental pra mim porque era loja de discos e também de livros. Eu li muito nessa fase da minha vida. Livros didáticos, mas também literatura latino-americana, literatura brasileira pra caramba, literatura nordestina. Um pouco de João Cabral de Melo Neto, Ariano Suassuna, Guimarães Rosa entre outras coisas. Se há uma vantagem em ser músico é exatamente essa. Nós não precisamos estar onde o nosso trabalho está. Então ela se espalha, ela consegue estar em muitos lugares. Sinceramente gostaria de ter mais 30 anos de carreira pela frente. Agora tenho 58 anos, 27 anos de carreira fonográfica. Então mais 30 anos de carreira vai ser bacana. Porque aí eu vou poder experimentar muitas coisas, muitas formações, fazer discos em vários lugares do mundo. Eu gosto de fazer colaborações com outros artistas.
OP - Você está agora com a turnê "Vestido de Amor", do álbum homônimo lançado em setembro. É um álbum gravado na França com artistas internacionais. Como foi o processo de produção desse álbum? Como tem sido a recepção do público?
Chico - Vestido de Amor foi gravado em Paris e produzido pelo franco belga Jean Lamoot, em 2022, e conta com a participação de músicos internacionais como Salif Keita, citado nos versos de "À Primeira Vista", e Ray Lema, pianista congolês. Gosto de me entregar a situações novas e foi muito legal porque foi um encontro de pessoas que não estão nas suas casas. Trabalhei com músicos brasileiros como Natalino Neto, que tocou o baixo, e Zé Luiz do Nascimento que tocou a bateria, a percussão. Trabalhei também com músicos africanos, como a participação do Ray Lema. Mesmo estando longe de casa, gravando canções inéditas, foi um processo maravilhoso. Jean Lamoot é um produtor da escuta. Ele escuta muito o que o artista e músico estão produzindo, estão fazendo. Escuta inclusive as coisas que não vão entrar no disco e foi um processo muito interessante, muito respeitoso. As canções de Vestido de Amor foram compostas nos últimos 3 anos. Boa parte delas surgiram no isolamento da pandemia, alguma coisa apareceu no Uruguai, onde passei três meses no inicio do ano passado em uma casa alugada com amigos. Esse disco celebra meu encontro, admiração e gratidão pelo que a África me dá e me faz ser. Como esse projeto foi feito na França com músicos que trabalham com essas matrizes africanas, isso fica muito transparente e fico feliz que apareça dessa forma. Eu tive a felicidade de fazer uma turnê muito bem estruturada, passando por várias capitais, cidades importantes da Europa, como Santiago de Compostela, além de Madri e Barcelona, também na Espanha. Fiz Porto e Lisboa em Portugal. Londres na Inglaterra. Berlim na Alemanha. Marselha e Paris na França. Foi muito bacana! Voltei ao Brasil e a recepção tem sido calorosa. O brasileiro tem muito orgulho da cultura brasileira. A receptividade do público tem sido maravilhosa, em cada cidade por onde tenho passado. E isso me deixa muito feliz.
OP - Apesar de gravado no exterior, o disco também traz referências tanto da musicalidade brasileira como africana. Como se deu esse processo de pesquisa? Quais foram as referências?
Chico - Essa costura oceanográfica é o que caracteriza "Vestido de Amor". O disco traz 11 faixas inéditas e abarca uma gama variada de ritmos, passando por
coco, rock, forró, reggae e rumba, entre outros. Essa diversidade é intrínseca ao meu trabalho e se faz presente desde o meu primeiro álbum, "Aos Vivos".
OP - Quais as expectativas para o show em Fortaleza e no Elos? Qual será o setlist?
Chico - Gosto muito de tocar em Fortaleza e sei que Fortaleza gosta muito de mim. "Vestido de Amor" quer refletir um contrário de uma armadura, que serve para se esquivar, se afastar, se defender do outro. O que proponho, nesse show de lançamento do álbum em Fortaleza, no Elos Festival, é abrir o coração, abrir-se por inteiro, rasgar-se para receber o outro e também para explodir e contagiar o outro com essa autoexplosão. O novo disco é a base do show, mas outras músicas devem surgir durante a apresentação.
Festival Elos
Quando: sábado, 26, às 16 horas
Onde: Aterro da Praia de Iracema
Programação gratuita
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