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Conheça Amanda Nunes, artista radicada no Ceará com mural na SPFW
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Conheça Amanda Nunes, artista radicada no Ceará com mural na SPFW

Radicada no Ceará, Amanda Nunes, tem 27 anos e desenvolve artes em telas, painéis e murais da cidade de Fortaleza
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Painel da artista plástica Amanda Nunes no SPFW (Foto: Wanatta/Divulgação)
Foto: Wanatta/Divulgação Painel da artista plástica Amanda Nunes no SPFW

Delineado gatinho, piercing, tatuagens, tênis all-star com respingos de tinta, vestida de uma blusa que acabara de personalizar para a entrevista. Traços juvenis corroborados pelo aviso “ainda estou aprendendo a dar entrevistas”, acompanhado de um sorriso tímido. Em uma manhã de sexta-feira de sol a pino, Amanda Nunes, de 27 anos, pintava um grande mural em um dos prédios do Residencial Cidade Jardim II, no bairro José Walter. A jovem está entre os artistas do Festival Concreto, que tem como proposta promover intervenções artísticas e fomentar a arte urbana. Com a obra quase pronta, reservou um momento para fazer fotos e conversar com o Vida & Arte.

Com infância intercalada entre Ceilândia, cidade satélite de Brasília, onde nasceu, e Pacajus, na Região Metropolitana de Fortaleza, Amanda sonhava em ser grande. Talvez por sua condição geográfica, de ter crescido às margens das capitais, quando pequena não tinha respostas prontas para a dúvida “o que quer ser quando crescer?”. Contrariando clichês como “médica”, “veterinária” e “professora”, queria era ser alguém importante. Estar nas televisões, jornais e ser reconhecida, embora não tivesse muitos exemplos de pessoas como ela em espaços de destaque. A importância que desejava ia além da individualidade, capaz de fazer a diferença em seu meio. Já o “ser artista” viria à medida em que conhecia a vida.

“Como toda criança de periferia, o primeiro contato que tive com a arte foi com a arte de rua, porque eu morava em uma casa de esquina e tinha uma parede branca, então sempre aparecia gente do grafite para pintar. Era um evento quando isso acontecia. Eu ficava observando e achava a coisa mais incrível”, relembra ela.

Entre retalhos de tecido, de papel e as tintas, passou a amar o processo de criação. “Eu sempre gostei de criar, mas eu não me entendia como artista e nem via que isso pudesse se estender pelo resto da minha vida. A própria escola apaga um pouco essa veia criativa que as pessoas têm, o ensino das artes não é tão difundido dentro das escolas”, avalia Amanda.

Anos mais tarde, na escolha da faculdade, optou pelo Design Gráfico, momento em que teve o primeiro contato com a ilustração digital, embora a técnica não fizesse seus olhos brilharem. Seria, portanto, nas artes manuais o seu reencontro com a criança que olhava, encantada, os grafites na rua.

“Com o tempo fui migrando para uma arte mais manual, até que em 2019 eu comecei de fato a tentar trabalhar com arte. Eu pintava telas com tinta acrílica, mas até eu me entender como artista demorou muito, porque mesmo já trabalhando com isso, eu achava muita pretensão minha me classificar como artista. Hoje em dia eu me entendo como artista, depois de muitas pessoas falarem, de ser chamada para as coisas, acho que sou artista mesmo”, demarca ela, entre risadas.

Longe de ser exclusividade da jovem artista, a auto-afirmação enquanto artista é um caminho árduo para mulheres, ainda mais se tratando de mulheres negras. No rol dos maiores nomes da literatura brasileira, a escritora Conceição Evaristo lançou seu primeiro livro apenas vinte anos após escrevê-lo. Em uma de suas entrevistas, a autora de “Olhos D’água” e outros best-sellers, atribui o fato ao “imaginário da mulher negra” e destacou as dificuldades enfrentadas no mercado da arte, que são maiores do que de outros grupos, como homens brancos, por exemplo. Da mesma forma, Amanda Nunes tem conquistado espaços na arte, mas não sem dificuldades.

Só nos últimos meses pôde, de fato, sobreviver exclusivamente de arte. Deixou o trabalho em agência para dedicar-se ao trabalho autoral e a produção de conteúdo como forma de divulgar o que tem desenvolvido.

“Eu não tinha referências em casa, porque eu sou de uma família de periferia, de pessoas pobres. Ninguém tem a possibilidade de trabalhar com arte ou coisas subjetivas. As pessoas têm que fazer o que eu fiz por muito tempo, que é o trabalho formal, de oito, dez horas por dia”, relembra a artista.

Neste mês de outubro, quando assinou o mural de 200m² para o São Paulo Fashion Week, principal evento de moda do País, pôde sentir orgulho de sua trajetória. Ali, Amanda, arte e grandeza se tornaram um só.

Ancestralidade

Como neta e filha de candangos, termo que faz referência aos trabalhadores migrantes que trabalharam na construção de Brasília, Amanda Nunes mudou-se para o Ceará aos 9 anos.

Em 2019, período em que passou a vender as primeiras obras, teve apoio da mãe e dos amigos. "Foi quando entenderam que era isso que eu queria e começaram a me apoiar", diz ela.

Neste ano, um novo marco: foi convidada a pintar mural para a São Paulo Fashion Week, em projeto criado em parceria com o Museu de Arte de Rua. Para a obra, ela pensou uma homenagem ao artista plástico cearense Chico da Silva.

Feliz com o resultado, relembra primeiros traços. "Uma coisa que moldou a minha estética é que comecei a fazer arte em um período que estava muito mal. Eu tinha um diário e escrevia o que eu estava vivendo, mas achava que não conseguia representar bem através da palavra", conta. Diante da necessidade de se expressar, passou a complementar os escritos com desenhos e pinturas.

"Comecei a ilustrar, fazendo um desenho que julgava que representava cada parágrafo. Depois pegava tudo isso e criava uma composição, dando vida a uma tela", relembra.

Iconografia

Uma artista contemporânea, não só por utilizar as redes sociais como forma de expor seus trabalhos ou por estilizar técnicas tradicionais. E sim por romper padrões artísticos enquanto dialoga com questões estéticas, sociais, e políticas.

"Quando comecei a criar arte, uma das referências que eu tinha era a xilogravura, queria trazer cor para a xilogravura, então era tudo colorido. Minha infância e adolescência em Pacajus me trouxeram muito essa referência não só da xilogravura, mas da cultura popular de forma geral", rememora Amanda.

A preocupação de desenvolver trabalhos "simples, que passem mensagens" guiam seu fazer artístico.

Ao som de músicas de Belchior, Mateus Fazendo Rock e a banda Racionais MC's, os quais é fã, ela também encontra inspiração no cotidiano como mulher negra, artista, vivendo na capital. Mas além do que vive hoje, traz simbologias que remetem ao seu passado.

"Outra referência de arte que eu tive foi através da igreja, porque minha mãe era muito religiosa, então eu acompanhava ela na igreja e inclusive é até algo que trago no meu trabalho. Hoje não tenho religião, mas incluo no meu trabalho essas referências simbólicas cristãs", compartilha ela. Rejeitando o que considera "arte colonial" e "regras academicistas" da arte, desenvolve um trabalho identificado com a Arte Naif.

"Eu queria uma tela rápida, sem me preocupar com anatomia, perspectiva, luz e sombra, era tudo muito simples. Fui descobrindo as referências depois que comecei a trabalhar com arte. Não tinha muito uma referência (quando comecei), mas todas as pessoas que eu me identificava eram justamente pessoas que faziam isso, como o Chico da Silva, artista plástico do Pirambu", aponta ela.

Sem oportunidade de expor em galerias de arte, criou o perfil "Crimes Passionais" para publicar parte do seu trabalho artístico. Hoje com mais de 7.000 seguidores no instagram, fala do início da página.

"Quando comecei a página estava decidida a vender minha arte, então quis um nome que chamasse atenção e que não fosse batido.E que também diga o que estava produzindo no momento, então olhei para as obras e tinha essa simbologia cristã que representava traumas, dores, mesmo nas telas que eu falava sobre celebração, sobre amor. Nessa lógica cristã o amor está muito ligado ao sofrimento, à doação, sacrifício", diz Amanda, em sua primeira "explicação" do nome.

"Entendi que era um crime em nome da paixão, do amor, mesmo que seja utilizado para eufemizar feminicídio, mas que fica restrito à violência contra as mulheres, mas as atrocidades contra os povos também, muitas vezes feitas pelo próprio cristianismo. Então pensei no nome como forma de denúncia", completa Amanda.

Futuro

Esperançosa, feliz e grata foram os adjetivos elencados por Amanda para definir seu estado de espírito atual. Depois de deixar de vez o Design Gráfico, área que atuava até o ano passado, em um ato de coragem e de amor, apostou todas as fichas na carreira artística. Em menos de um ano vivendo somente do trabalho autoral, sonhos se realizaram. Embora ainda seja difícil listar novas metas, já tem alguns em mente.

“Acho que tenho sonhos pequenos e como tô começando a conseguir alcançar eu fico: ‘valha, o que é que vou sonhar agora?’. Algo que imagino no futuro é ter uma vida confortável o suficiente para que eu consiga ajudar minha família, ajudar minha mãe. Quero muito viajar para outros lugares”, diz, momento em que seu semblante anuncia emoção.

Como artista independente, Amanda tem a seu favor a experiência em agências de marketing, e além de pintar, também produz conteúdo para as redes sociais. Ela admite que apesar da expertise não é uma rotina fácil.

“É bem complicado isso de ser artista e produtor de conteúdo, um pouco desgastante você ter que estar mostrando sempre, sempre colocando sua cara e respondendo”, avalia. Da mesma forma, vê como inevitável para a carreira a promoção na internet.

“Se eu fosse mostrar só minha arte talvez não tivesse a mesma repercussão de hoje, então tive que aparecer. Já tive várias crises de querer largar tudo, justamente porque não conseguia essa coisa de ter que trabalhar com instagram. Mas tem dado certo, essa é minha única opção, pois não estou em galeria”, declara Amanda Nunes.

Sensível às causas sociais e politizada, também vislumbra contribuir para transformar as comunidades em que passou. “Outra coisa que quero muito, e acho que vai ser muito chão para chegar lá, é criar algo em Pacajus e Ceilândia para crianças, como escolinha de arte ou grafite, para que eu possa retribuir tudo isso que estou ‘bebendo’ no meio artístico”, encerra a artista.

Acompanhe a artista

instagram: @crimespassionais

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