O branco do Complexo Cultural Estação das Artes reflete a luminosidade do Centro histórico. Entre os equipamentos que integram o espaço, a Pinacoteca do Ceará foi inaugurada no último sábado, 3 de dezembro. Com 9.275 metros quadrados de área total, é a maior do Brasil em espaço geográfico. Mais importante do que o tamanho é a história traçada dentro do equipamento.
Ao adentrar a Pinacoteca, o letreiro "Bonito pra chover" apresenta o título da mostra que inaugura o local. Além de ser uma frase que faz parte do vocabulário cearense, é também uma homenagem ao professor Gilmar de Carvalho, autor do livro que leva essa mesma expressão.
"A frase anuncia um tempo novo, um tempo de persistência, de renovar a persistência, para que haja uma colheita. A ideia é que a partir desse momento, depois de um tempo tão tenebroso, um tempo tão severo para a cultura, que a gente possa fazer florescer, de fato, cultivar todas essas possibilidades e potências da cultura cearense", destaca Rian Fontenele, que assume a gestão da Pinacoteca.
A Mostra é um conjunto de três exposições de longa duração, que celebram a história da arte cearense e dois centenários de pintores cearenses reconhecidos no Brasil e no mundo: Antonio Bandeira e Aldemir Martins. Somando os três espaços são 982 obras do acervo do Estado e coleções particulares.
Com tantas peças e espaço tão amplo, a Pinacoteca requer uma visita atenciosa. Após uma visita guiada com mediadores do equipamento, além de conversas com artistas, curadores e galeristas, o Vida&Arte mergulha nessas três exposições e apresenta conceitos, obras e reflexões.
Se Arar
Ao entrar na Pinacoteca, o branco, preto e cinza predominam. Mas quando as portas da exposição "Se Arar" são abertas, as cores tomam conta do espaço. Com 169 obras, sendo 91 do acervo da Pinacoteca e 78 emprestadas, a exposição traça um olhar sobre a arte no Ceará. A curadoria é formada por Cecília Bedê, Herbert Rolim, Lucas Dilacerda, Maria Macedo e Adriana Botelho.
"Se Arar" atravessa diversas gerações de artistas e traz pinturas, audiovisuais, esculturas e obras interativas. A galeria derruba as paredes tradicionais dos labirintos dos museus e traz um espaço amplo, onde tudo se conecta. Duas escolhas curatoriais foram essenciais na exposição. A primeira foi olhar para além da capital. "A gente teve essa questão de ter artistas da capital e do interior", afirma Bedê. A segunda foi olhar para além do acervo, trazendo 40 artistas convidados. "Com esses 40 artistas, a gente consegue, de uma certa forma, cobrir algumas lacunas de gerações ou de linguagens ou de temas que os artistas trabalham", explica a curadora.
Apesar de ser impossível retratar todos os profissionais que contribuíram para o campo da arte cearense, o galerista Leonardo Leal reconhece que "houve um grande esforço para se ter um recorte amplo e diverso". "A exposição apresenta um amplo recorte da produção artística cearense, tanto temporal quanto territorial, e sem dúvida conseguiu transitar por várias gerações, técnicas, criando um leque bem diverso de nossa produção artística", destaca.
Com o quadro "Iemanjá", Azuhli é uma das artistas que tiveram suas obras expostas na Pinacoteca. "Pintei em um janeiro, era perto do dia de Iemanjá e me sentia extremamente cuidada por ela. Ainda me sinto. Acho que a grande maioria das pessoas que vivem em Fortaleza e tem essa vivência no mar sente a força dela. Na pintura eu quis transmitir essa força da água, da pureza", explica. A artista afirma que ficou "imensamente honrada e feliz" ao ser convidada para participar da exposição.
A obra "Tope" de Sérgio Gurgel também está presente na galeria, que traz a imagem de dois pés: um humano e outro de um galo. O artista conta que são dos elementos que traçam uma narrativa de suas visitas às casas das tias, no interior do Estado. "Fiquei honrado em estar numa mostra tão potente e no meio de grandes nomes da nossa arte. Dentro desse contexto da arte oficial fico mais feliz ainda do olhar merecido aos artistas do interior como eu, que sou de Acopiara, no centro sul do Ceará. Acho que panorama seria isso… um vasto e cuidadoso olhar pra produção sem se reter ao que está a vista na capital. Sinto-me com grande responsabilidade em representar o meu sertão central do nosso estado com a minha estética e narrativa", declara.
Amar se Aprende Amando
Após a visita ao ambiente iluminado e colorido de "Se Arar", o público se depara com o grande letreiro: "Amar Se Aprende Amando". É o título da exposição que homenageia o centenário de nascimento do artista cearense Antonio Bandeira. Ao adentrar, a iluminação escurece, mas não com o objetivo de ser sombria, mas intimista. O espaço é composto por 645 obras, tornando essa a maior exposição em número de peças da Mostra. A curadoria é assinada por Bitu Cassundé, com curadoria adjunta de Chico Porto.
Nascido em Fortaleza no ano de 1922, Bandeira iniciou na pintura como autodidata. Em 1941, criou o Centro Cultural de Belas Artes (CCBA) ao lado de outros artistas, com o objetivo de mobilizar a cultura visual cearense. Foi pioneiro do movimento abstracionista no Brasil, apresentando seu mundo interior de lembranças e sentimentos a partir dos traços, cores e respingos.
A primeira visão que o público tem é de um letreiro vermelho com o nome do artista. Na mesma parede, tem a explicação do título da exposição: um poema de Carlos Drummond de Andrade feito para o pintor, de onde foi retirada a frase "amar se aprende amando".
Ao redor, fotografias e autorretratos apresentam a identidade para aqueles que talvez não conheçam Bandeira. Um homem negro com barba e cabelos escuros. "Trazer essas imagens é reafirmar a identidade negra dele", acredita Larissa Ribeiro, uma das mediadoras do espaço que ajuda os visitantes a compreenderem os verdadeiros sentidos da exposição.
Uma das paredes que se destacam fica logo após os autorretratos. São rabiscos, desenhos e pinturas de Exu. É a primeira vez que essas obras são expostas e, apesar de não ser público as crenças religiosas do pintor, a parede revela o contato com religiões de matriz africana.
Ao longo da exposição, os visitantes entram em contato com o processo de desenvolvimento das obras de Bandeira. Em vez de apresentar somente o resultado final, as paredes são preenchidas por rabiscos e desenhos que permitem ao público mergulhar nas criações do pintor de maneira mais profunda.
As pinturas abstratas, um dos destaques da carreira de Bandeira, não faltam na exposição. "Certamente, as abstrações dos anos 60 são sua fase mais celebrada, mostra a maturidade do artista que ainda estava alcançado um ápice que precocemente foi interrompido. O fato de que essas obras são de acesso restrito do público, pois estavam na sede do Governo, no Palácio da Abolição, destaca ainda a importância da participação das obras na exposição", ressalta o galerista Victor Perlingeiro.
"A curadoria também tem um mérito muito grande de destacar o processo criativo do artista nos anos 1940 e início de 1950, cujo grande público não conhece os caminhos que o artista percorreu. Na exposição há um destaque maravilhoso pro estudo de capa do livro 'Keté o sujinho de terra', um trabalho raro na sua produção", acrescenta.
Encerrando a exposição, os visitantes se deparam com uma linha cronológica da vida de Bandeira. "Amar se aprende amando" é uma visita profunda, educativa e inspiradora à obra do pintor.
No Lápis da Vida Não Tem Borracha
O centenário de nascimento de Aldemir Martins é celebrado na exposição "No Lápis da Vida Não Tem Borracha". Com curadoria de Rosely Nakagawa e curadoria-adjunta de Waléria Américo, o espaço é composto por 168 obras.
Nascido em Ingazeiras, interior do Ceará, em 1922 Martins utilizou cores intensas e contrastantes em suas produções. Aderiu ao figurativismo, trazendo frequentemente gatos, galos e cangaceiros em suas obras. Também fez parte da criação do Centro Cultural de Belas Artes ao lado de Antonio Bandeira e outros artistas.
É possível adentrar a exposição a partir de duas entradas: por meio da primeira galeria, "Se Arar", ou por meio da segunda, "Amar se Aprende Amando". Ao sair da exposição de Bandeira, um quadro do pintor ao lado de Martins marca o início do novo espaço. Não poderia ser diferente. A imagem mostra a feliz coincidência desses dois amigos, nascidos no mesmo ano e que, portanto, chegam ao centenário juntos.
Conhecido pelas cores, Martins é visto pelo público por outros olhos no primeiro momento. O primeiro contato do público é com os desenhos em preto e branco, alguns deles feitos em folhas de calendário. Assim como acontece na exposição de Bandeira, o último espaço não se limita a obras prontas e permite que os visitantes explorem os traços de Martins.
A filha do pintor, Mariana, é a musa das primeiras paredes. Os desenhos apresentam a menina em diferentes situações do cotidiano e chamou a atenção do arquiteto e artista plástico Totonho Laprovitera. "Criança, sentada na cadeira, é uma crônica de costumes. A importância dela se dá, a meu ver, pela ferra do afeto em sua obra. O saudoso Aldemir é um dos maiores desenhistas que tenho conhecimento", declara.
Cora, a esposa do artista, também ganha destaque nos desenhos, seja dormindo ou tricotando. Os quadros de Martins possuem muitas relações com um cotidiano. Há até um espaço dedicado aos rabiscos do pintor enquanto assistia futebol. Também não falta elementos pelos quais ele ficou conhecido, como cavalos, cangaceiros e galos.
O galerista Victor Perlingeiro destaca duas obras da exposição. "É imprescindível falar do recorte da exposição sem destacar a obra 'Pelé' (1966) sendo ela cânone de uma série tão celebrada dentro da carreira de Aldemir Martins, inclusive sendo exposta no exterior e recebendo honrarias e prêmios. Mas acredito que merece ser comentada a obra 'Sem título' (1963), onde o artista produz uma figura amorfa, mistura de vários símbolos do seu trabalho, trazendo um mistério de formas orgânicas", afirma.
Visitação Pinacoteca do Ceará
Quando: Quinta a sábado,
de 12 às 20 horas (último
acesso às 19 horas)
Domingos, de 10 às 18 horas (último acesso às 17 horas)
Onde: Rua 24 de maio, S/N, Praça da Estação, Centro
Entrada franca