Livro vencedor do prêmio Nestlé de Literatura de 1994 e do Jabuti de Melhor Capa de 1993, "O anjo pornográfico" completou 30 anos de sua primeira edição e ganhou, em setembro último, nova edição pela Companhia das Letras. Nelson Rodrigues, seu personagem principal, faria, por sua vez, 110 anos nesta época de eleições transformadas em guerras religiosas e golpes, copas perdidas e banquetes com carne de ouro. Um país, desse modo, perdido entre a fome na barriga e o funk nas bundas, parece ter muito a aprender com o autor de "Vestido de Noiva" e muitos outros escândalos dramatúrgicos. Responsável por organizador a obra do cronista, ensaísta e teatrólogo, a vida por escrito de Nelson e as tantas vidas por elas criadas lançam sempre novas questões.
Se ser "pornográfico" é quase uma unanimidade a quem ainda busca uma pulsão de vida em meio a tamanha pulsão de morte no mundo atual, como ler Nelson Rodrigues nos auxilia nessa resistência? Pela biografia rodriguiana feita pelo também polêmico Ruy Castro, recém empossado na Academia Brasileira de Letras, de que modo a pesquisa de vida e obra deste sujeito controverso pode ajudar a dar conta do pensamento e do agir brasileiros? Ou ainda: em que pese a repercussão internacional crescente de textos como "O beijo no asfalto", por exemplo, o Brasil possui um bom "relacionamento" com este seu artista controverso e potente de palcos e de livros?
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Nascido em Pernambuco em 1912, o artista se mudou e se criou no Rio de Janeiro de onde carrega, como quase nenhum outro, a identidade. A partir do ofício no jornalismo, primeiro como ajudante de redação, depois como profissional, encantava-se com os grandes causos de amor e morte que cobria. Deles surgiu um olhar aguçado para os podres de caráter e comportamento, sobremaneira da pequena burguesia carioca. Porém sua artilharia mirava contra todos os setores sociais. Quando chamado de tarado por suas criações, respondia "Eu, pornográfico? Diante de vocês eu sou um anjo!".
Temos, assim, em Nelson Rodrigues um exemplo contundente da complexidade brasileira por meio da qual alguém conservador politicamente, sofreu diversas censuras pela Ditadura Militar. Mais recentemente, como em todos os outros momentos da nossa história recente, suas obras passaram por novas adaptações e ganham novos públicos como o que aconteceu com a versão fílmica d'O Beijo dirigida por Murilo Benício, contando com Lázaro Ramos e Débora Falabella no papel principal e uma brilhante mesa de leitura e discussão do texto com a presença da atriz que encomendou o texto a Nelson, Fernanda Montenegro.
Ruy Castro, por sua vez, é autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e de livros de reconstituição histórica acerca de variados temas como o samba-canção. A partir de "O Anjo Pornográfico", quase romance de tão instigante e contraditória vida, contudo, há quem demarque como o surgimento da biografia moderna brasileira em que, segundo outros, há, pelo estilo, uma espécie mesmo de autobiografia embora não seja. Assim, o dramaturgo pernambucano-carioquíssimo, além de sistematizado, foi alocado de modo substancial na cultura do país. O gênio, louco, pervertido e brasileiro se torna um clássico ainda que interditado. Pelos padrões, sobrevoa, tal a foto da premiada capa de Hélio de Almeida. Nela, o movimento ao redor desse anjo caído.
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