Com água e solo fértil, uma pequena semente pode virar árvore. Processo semelhante acontece nas escolas de artes, que por sua vez provocam a criação, desenvolvem potencialidades e colhem os frutos - materializados nas produções artísticas. Nesta quinta-feira, 22, às 18 horas, tem início a exposição "Reflorestamento" no Museu de Arte Contemporânea do Ceará (MAC-CE). A mostra comemora as dez edições do Laboratório de Criação em Artes Visuais da Escola Porto Iracema das Artes.
Com curadoria do pesquisador em artes Lucas Dilacerda e da coordenadora do Laboratório, Aline Albuquerque, "Reflorestamento" conta com 83 artistas e 79 obras. Dividida em dez núcleos temáticos, a exposição preza por diversidade temática, abordando ancestralidade, ecologias e fabulações, entre outros temas.
“Para reflorestar, no entanto, é preciso antes preparar o terreno, adubar o solo e fertilizar a vida. Nesse gesto, os saberes vegetais, animais e minerais são aliados que nos ensinam outras temporalidades e outras possibilidades de convívio", destaca o texto de abertura. A exposição acontece a partir de uma demanda dos próprios egressos, um “desejo coletivo” de voltar a ocupar museus, após o período de isolamento social rígido, motivado pela pandemia de Covid-19.
Diretora de Formação e Criação do Instituto Dragão do Mar, Bete Jaguaribe está à frente da Escola Porto Iracema das Artes desde sua fundação, em 2013, e avalia como significativa a experiência nos Laboratórios de Criação. "A gente considera longevo, porque esse campo das políticas culturais sempre é muito interditado. Esse período de dez anos continuados, por si só, já é um indicativo de importância no campo cultural do Ceará e do Brasil", destaca Bete.
Além do Laboratório de Criação em Artes Visuais, a escola também conta com laboratórios de outras linguagens artísticas como o teatro, a dança, o cinema e a música - este último teve, pela primeira vez, uma edição dedicada aos artistas do Cariri cearense. A ideia é que funcionem como "espaços de experimentação, pesquisa e desenvolvimento de projetos culturais", sobretudo no âmbito estadual mas também no nacional.
"Nós conseguimos ampliar e realizar um laboratório fora da Capital, no Cariri, em parceria com a Vila da Música. A outra questão é a própria produção e criação do Laboratório, com projetos e artistas produzindo obras que circularam em circuitos nacionais e internacionais de arte, ganhando prêmios. É uma experiência muito exitosa", analisa a gestora. Para as próximas edições, a projeção é que possa contribuir com outras políticas públicas, como a de educação e de assistência social.
"É um modo de formação bastante diferenciado da educação clássica, burocrática, que não tem uma dinâmica de criação. No próximo ano, vamos nos debruçar em uma pesquisa que reflita que indicações essa experiência (dos laboratórios) coloca para alimentar outros campos de políticas públicas", antecipa Bete, que demonstra otimismo com o cenário político e o retorno do Ministério da Cultura.
Os desafios de descentralizar
Os artistas Leo Silva e Vitória Helen participam da edição atual do Laboratório de Artes Visuais com o projeto "Sem nome". Enquanto ele é morador do conjunto Santa Filomena, no Jangurussu, e tem como foco fotografia, Helen é do Curió, onde trabalha com artes urbanas.
"O 'Sem nome' é apenas o título, aqui saímos em busca dos nomes, histórias e das construções locais. De retratarmos a realidade de muitas pessoas periféricas, de não entendermos nossas narrativas e muitas vezes não conseguirmos saber nosso endereço ao certo", explicam os artistas. Definido como uma "pesquisa visual imagética", utilizam técnicas de fotografia e lambe-lambe.
"Nosso projeto tenta trazer um mapeamento, uma historicidade e nosso olhar sobre o Santa Filomena no Jangurussu e a Hellen no Curió. Estamos com o trajeto um projeto de expografia do artista João, que é conhecido como MULAMBÖ, e tem sido um aprendizado e tanto", compartilha Leo. Para a mostra "Reflorestamento" traz uma fotografia da mãe com o título "A Quem me Deu".
"A minha obra na verdade é uma imagem única, que é a imagem de minha mãe, a gente tem uma história de migração do interior para a cidade grande, e isso torna uma pessoa importante para mim não só nas minhas mudanças pessoais, mas também a pessoa principal nos meus trabalhos", compartilha o artista. A obra faz parte da série "Rotina Familiar", iniciada em 2020 por Leo, com objetivo de lançar um olhar "de dentro de casa para fora".
"A gente poder estar em um laboratório desse é super importante, principalmente para alguém que não tem tanta vivência nas artes visuais. Sou muito da fotografia e hoje tô conseguindo me abrir um pouco para as artes visuais em geral", pontua Leo. Ele vê como necessário maior descentralização e adaptação às rotinas dos artistas, que muitas vezes enfrentam jornadas duplas.
"Falando de mim, que sou um artista que mora na periferia de Fortaleza, e que preciso estar diretamente trabalhando em outras correrias para se manter e também fazer os trabalhos. Então existe uma possibilidade de diálogo, de como a gente pode estar em contato para participar das atividades do laboratório. Eu participo da maioria das reuniões gerais, que são à noite, mas das oficinas, por exemplo, não consegui, porque são à tarde", aconselha.
Novas estéticas
Historicamente voltada às classes sociais de maior poder aquisitivo, o panorama de acesso à formação em artes visuais tem se modificado na última década. Na Escola Porto Iracema das Artes, diversidade étnica e estética têm sido buscadas, sobretudo a partir do ano passado, com o fortalecimento de políticas afirmativas.
Naedição de 2021/2022 do Laboratório de Artes Visuais esteve a artista visual Byya Kanindé, que está com duas produções para a exposição "Reflorestamento". "Minhas obras são duas fotografias, que mostram a força da mulher indígena, e como nossos corpos estão nesse espaço, a força que a natureza tem e como é importante respeitar", explica Byya. Em uma das obras, traz o Urucum, fruta a qual se extrai a tinta utilizada em pinturas indígenas.
"O vermelho que remete ao sangue derramado por lutas do nosso território, luta pela sobrevivência das nossas matas, e como pedir socorro para que as matas, rios, flores, plantas sejam valorizadas e cultivadas cada vez mais", destaca a artista.
relembra os primeiros momentos no Laboratório, "eu era a mais nova da turma, tiveram momentos que eu ficava perdida, mas as formações me ajudaram a desenvolver meus conhecimentos e ter um olhar diferente para o que eu produzia", diz Byya Kanindé. A seleção a qual a artista participou foi a primeira com representantes de quatro aldeias indígenas (Karão jaguaribaras, Potiguara, Anacé e Kanindé).
Satisfeita com a experiência no Laboratório, Byya Kanindé indica caminhos para aprimorar a experiência. Maior presença de professores indígenas e discussões ecológicas são algumas sugestões. "O Porto ir até as zonas de retomada, ter vivências nas aldeias e planos de organização para trabalhar junto com grupos indígena, como Tamain", aponta a artista.
Olhar de quem passou
Egresso do Laboratório de Artes Visuais, o artista MDias Preto finalizou seu ciclo formativo em 2019. Para a "Reflorestamento" traz a série de fotografias "Um dia te mato dentro de mim", a reúne cinco fotografias do local onde foi vítima de assédio sexual na adolescência.
"Neste trabalho eu fui até o Google Maps e tirei uma foto do local do assédio pois não consegui ir até lá (de forma presencial). Após esse processo, resolvi destruir essas imagens de 12 formas diferentes, uma destruição para cada ano de silêncio. Até o momento consegui destruir cinco e o processo encontra-se em aberto", explica o artista. Embora aborde uma situação traumática, representa, segundo ele, denúncia e ao mesmo tempo cura.
"Ao intervir na imagem eu sinto que estou intervindo na minha vida. Assim a arte provoca modificações concretas em quem eu sou", diz MDias, que também avalia o Laboratório como um lugar que expandiu seu olhar, para ver "novos mundos possíveis".
"De lá pra cá eu participei de várias exposições coletivas pelo Brasil. Em 2021 tive a oportunidade de vencer uma premiação nacional e montei minha primeira exposição individual. Agora em 2022 eu integrei a equipe de expografia de três exposições de abertura da Pinacoteca", lista ele. "Atrelo minha passagem pelo porto como um Portal que se abriu pra mim no mundo das artes. Eu entrei nesse portal e não desejo sair, pois descobri que o que faço de melhor é arte", pondera MDias.
Em dez edições do Laboratório de Artes Visuais, reconhece que o Laboratório passou por mudanças positivas. "Passou por várias melhorias e muito do que já problematizamos foi implantado. Eu sinto falta de uma bolsa auxílio (de R$1000, que os artistas dos Laboratórios de Criação recebem da Porto Iracema) para a temporada formativa, pois são vários dias de aula. Acredito que o retorno dos alunos agora em lugar de professores seja algo interessante também, uma forma de mostrar que a escola forma além de artista, mas pessoas que ensinam os próximos também", sugere.
Exposição "Reflorestamento"
Quando: abertura quinta-feira, 22, às 18 horas. Visitação de terça a sexta, das 9h às 18 horas (com acesso até as 17h30min); Sábados, domingos e feriados, das 13h às 18 horas (com acesso até as 17h30min)
Programação segue até março de 2023
Onde: Museu de Arte Contemporânea do Ceará (Rua Dragão do Mar, 81 - Praia de Iracema)
Gratuito e aberto ao público
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