“O ano da retomada”. Caracterizar 2022 dessa forma pode significar a admissão de uma postura grandiosa para o período. Não seria um equívoco, entretanto. Afinal, com o aumento da cobertura de vacinação contra a Covid-19 e a redução nos índices de contaminação pela doença, foi possível avançar a um estágio com características semelhantes ao pré-pandemia, como a realização de eventos presenciais.
Se pensou em festivais de música, não errou. Entretanto, outras áreas também foram atingidas pela “retomada”. A partir desta segunda-feira, 26, o Vida&Arte inicia série de matérias com resgates dos principais acontecimentos que marcaram diferentes linguagens artísticas. Hoje, as palavras são da Literatura.
Para além de lançamentos, o campo foi marcado pela volta presencial de feiras e bienais após anos de virtualização forçados pela pandemia. A nível local (e, ao mesmo tempo, nacional e internacional), a Bienal Internacional do Livro do Ceará chegou à 14ª edição reunindo nomes de peso na equipe de curadoria, como Conceição Evaristo, Daniel Munduruku, Tércia Montenegro e Talles Azigon.
O evento, realizado em novembro, se destacou também pela pluralidade da programação, com atividades ministradas por realizadores indígenas, periféricos e negros, por exemplo. Além disso, apresentou a quase 400 mil visitantes as produções de nomes locais, descentralizando a oferta de obras literárias.
Essas características são ressaltadas por Geomarque Carneiro, produtor de literatura do Sesc Fortaleza, que destacou a discussão em torno da produção literária dos povos indígenas do Ceará. “Afastando a imagem no senso comum de que a literatura é feita por um grupo seleto de pessoas, a Bienal possibilitou diálogos incríveis e muito acolhimento”, pontuou.
A professora e escritora cearense Vanessa Passos, autora de “A Filha Primitiva”, reforça a importância do retorno de eventos presenciais, “a retomada dos eventos presenciais, em que as feiras e bienais estavam cheias de pessoas sedentas não só por comprar livros, mas pelas rodas de conversa com escritores, editores e pessoas ligadas à literatura”.
Vanessa, porém, avança em outros marcos para a literatura neste ano, como a homenagem à Maria Firmina dos Reis na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). A autora de “Úrsula”, primeiro livro abolicionista escrito em língua portuguesa, foi a primeira escritora negra e nordestina a ser homenageada no evento.
Ela também analisa a “ascensão, expansão e consolidação dos clubes de leitura”: “São momentos importantíssimos para o fomento da leitura, a promoção do debate sobre literatura e também questões de âmbito social, cultural e político, e ainda, a divulgação de livros. Escritoras, sobretudo, autoras vivas, passaram a ser lidas por conta de movimentos de clubes de leitura, como: Leia Mulheres, Leia Nacionais e Leia Nordeste”.
Como Geomarque afirma, 2022 foi um ano “pujante para o campo da literatura, em especial a cearense”. Foi possível verificar esse cenário com o anúncio em outubro de que o romance de estreia do cearense Stênio Gurgel, intitulado "A Palavra que Resta", foi um dos dez finalistas da categoria “Romance Literário” do 64º Prêmio Jabuti. Além de Gardel, o cearense Lira Neto e a paulista radicada no Ceará, Nina Rizzi, também foram indicados ao prêmio.
Também foram pontuadas marcas importantes de cronistas do Vida&Arte, a exemplo da celebração dos 15 anos de Raymundo Netto e dos 10 anos de Romeu Duarte como cronistas do núcleo. Além disso, também foram lembrados os dez anos de morte do poeta, contista e cronista Airton Monte, colaborador do Vida&Arte.
Acompanhando o movimento de retomada da cena literária cearense de forma presencial, em fevereiro foi inaugurada a livraria de rua Coração Selvagem, na Praia de Iracema. O espaço ficou conhecido como ponto de encontro em torno da literatura e de lançamentos literários. Em outubro, porém, foi anunciado o fechamento da livraria após oito meses.
No décimo mês do ano também houve destaque para a conquista da francesa Annie Ernaux como vencedora do Nobel de Literatura. A autora foi premiada pela “coragem e acuidade clínica com que descobre as raízes, os distanciamentos e as restrições coletivas da memória pessoal” e é conhecida por seus romances sobre classe e gênero baseados em sua experiência.
Neste ano, a retomada dos eventos presenciais e dos encontros em prol da literatura apontaram um respiro para o campo. Resta saber, então, os caminhos que serão trilhados a partir de 2023.
In memoriam
Perdas expressivas para a literatura ocorreram ao longo de 2022. Em abril, a escritora Lygia Fagundes Telles (foto), primeira mulher brasileira a ser indicada ao Prêmio Nobel de Literatura, deixou o plano físico. Telles venceu cinco vezes o prêmio Jabuti e também foi agraciada com o Camões, prêmio mais importante da literatura portuguesa. Em 17 de dezembro, a carioca Nélida Piñon, primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras (ABL), também faleceu. Fizeram suas passagens também os cearenses Carlos Emílio Correia Lima e Raimundo Nonato Ximenes, autor de “De Pirocaia a Montese”.
Pão para o espírito
Em um ano marcado por celebrações centenárias - a exemplo de Lima Barreto e Saramago -, um movimento cearense também esteve nos holofotes dos resgates da memória. Afinal, foi em 30 de maio que a agremiação literária “Padaria Espiritual” completou 130 anos de fundação. Criada por escritores como Antônio Sales, Adolfo Caminha e Rodolfo Téofilo, ela surgiu para despertar o gosto pelas letras na Capital cearense. Em fevereiro, o Vida&Arte noticiou a campanha do professor e Doutor em Literatura Comparada, Charles Ribeiro, para publicar uma HQ que resgata a história da Padaria Espiritual.
Conceição Evaristo
A escritora Conceição Evaristo foi curadora da Bienal Internacional do Livro do Ceará e conseguiu ser contemplada na programação também pelo compartilhamento de saberes de outros escritores, mesmo que não tenha participado fisicamente. Em 2022, lançou “Canção de Ninar Para Menino Grande”, um “mosaico afetuoso de experiências negras, um canto amoroso e dolorido”. Diante da importância da autora para a literatura brasileira, fundamental, então, seu ingresso na ABL, como enfaticamente solicitou Fabiano Piúba no encerramento da Bienal.
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