Antônio Alcântara (1934-2019) lia o vento. E contava suas leituras. Parti delas para compreender como seria a próxima estação de chuvas, o que no Ceará chamamos de inverno. A leitura como condição da existência.
Dele ouvi falar no começo de 2020, no Encontro de Guardadoras e Guardadores de Experiências de Chuva e Sementes. É a partilha que acontece todo 6 de janeiro no sítio Aroeiras, em Guassussê, Orós.
É o Dia de Reis no calendário cristão. Dia de desmontar lapinhas e presépios. Dia da visita de Baltazar, Gaspar e Belchior/Melchior. Os magos de diferentes sabedorias, territórios e oferendas. A confirmação da presença divina encarnada no filho de Maria e José seria pelos reis magos anunciada em outras terras. Dá-se assim a epifania, a teofania, a revelação do nascimento do menino-deus.
Os magos com oferendas. O recém-nascido na manjedoura, ele próprio uma oferenda. Manjedoura tem ligação, remota, diz o google, com verbo em latim que vai dar em manger, na língua francesa, mangiare em italiano, nosso manjar em português. O divino, fonte, alimento, nutrição, é chamado pão da vida no cristianismo.
Criaturas leitoras, tem sotaques distintos nosso ofício de ler. E ganha materializações tão diversas quanto o falar, que é uma ação, das mulheres e homens profetas da chuva, por si só uma biblioteca de modos de prestar atenção.
Ver com o corpo todo. A leitura, experiência física, do sensível, convoca a partilha. Como fazem mulheres e homens, ano após ano, dedicando-se a montar, renovar, desmontar as narrativas da natividade de Jesus, reconstruções do contar desde a cena-mor em torno da manjedoura às ficções e fabulações que dão sotaque próprio a cada presépio. Cada um, uma oferenda.
Em Fortaleza, Dona Mundinha realiza uma há 75 anos. É uma promessa de presente a si mesma feita pela menina de cinco anos que era quando, pela primeira vez, esteve diante de um presépio. Disse para si que teria um tão logo tivesse sua casa. Honra seu próprio desejo. E reconta Dona Chicutinha, autora da lapinha vista na infância no Mucuripe, na rua da Paz.
No bairro onde Dona Mundinha nasceu dia 18 de abril de 1924, a obra se tornou pública. Como o mundo e o encontro de profetas da chuva, é feita por muitas mãos. Desde a primeira montagem, ela mobiliza o que e quem for preciso para passar dezembro de porta aberta recebendo as amizades, a vizinhança, a família expandida, gente conhecida e estranha, só no fruir do brinquedo e da brincadeira.
Na casa 290 da rua Senador Machado, o nascimento do menino-deus do cristianismo move o cinema ao vivo em miniatura que, sabemos porque assim somos, sentimos, Dona Mundinha não cessa de editar. Como profetas da chuva (re)elaborando suas leituras da natureza
As centenas de peças são de várias épocas. Surgem das mãos de mestres como seu irmão marceneiro Francisco Félix, o “tio Dezoito”, diz Antonieta, filha de Dona Mundinha. Outros filhos fazem a montagem. Tobias tambem desmonta. “McGiver” da família, Cláudio confecciona personagens e cuida dos motores. Pesca-se, trabalha-se no tear, pila-se milho. Um carneiro inteiro é assado lentamente.
É uma traquitana de ficções ali se bulindo em atividades de sustentar a vida cotidiana, talvez por isso também fantásticas. Dramaturgia de micro cenas com fios acionados por Dona Carochinha, o Senhor Trancoso, Monteiro Lobato, os irmãos Grimm e o armarinho sortido de quem conta ouve inventa história.
A porta aberta é sentido figurado. Já foi assim. Agora, toca-se a campainha. Bonito é olhar a lapinha dentro dos olhos da Dona Mundinha. Mundo imensidão feito o mais visitado presépio público em Icó, a 370km de Fortaleza. É o da capelinha nos fundos da Igreja Matriz, a de N. Sra. da Expectação. De fato, de portas abertas.
Desde 1996, é feito pelos gêmeos Márcio e Marciano Tavares, que moram na rua em que nasceram, a antiga rua do Meio, a da lapinha que chegou para eles como modo de louvar o advogado, professor, chefe de gabinete de prefeito e ponto de teatro Padrinho Almério. E o aprendizado dos dois com ele.
Almério Silva (1924 - 1996), por sua vez, provavelmente recebe a lapinha de, pelo menos, duas fontes: Comadre Berta e Zé Tavares. Ela, parteira, organizadora de pastoril, folguedo natalino, dona de pouso de viajantes na antiga rua Grande.
A casa era ponto de parada do carro que fazia Icó-Fortaleza. Mulher-encruzilhada, acolhia nascimentos e encontros, como a própria cidade, que surge no cruzamento de estradas do Ceará colonial. Ela e o marido, Odon, praticamente criaram Almério e outras crianças de Icó.
Zé Tavares, bisavô dos gêmeos, era artesão santeiro. Morreu em 1936. Com a inteligência nas mãos, atribui-se a ele uma série de peças cheias de esmero, na Lapinha da Matriz e em outros acervos.
O conjunto mais precioso, talvez, esteja guardado também em uma casa da rua do Meio, a rua das gentes escravizadas e prestadoras de serviço para as casas senhoriais das antigas ruas Larga e Grande.
Cidade-lapinha, com centenas delas em casas e espaços públicos só no conjunto urbano tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Icó tem um vívido calendário católico. A única procissão que passa pela rua do Meio é a de São José, cuja devoção no Ceará está associada à fartura de chuva. Céu chumbo aqui a gente olha dizendo está bonito pra chover.
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