Desde que chegou a Fortaleza para assumir sua vaga como professor do curso de Letras da Universidade Federal do Ceará, Atílio Bergamini promove sensibilizações de diversas naturezas. Seja na sala de aula, em grupos de pesquisa, orientações ou na literatura que produz, um olhar empático e insistente no humano o destaca. Pesquisador, dentre outros objetos, das narrativas de sobreviventes e testemunhas de crimes contra a humanidade, Atílio é também criador do selo editorial independente "Longarinas". Neste ano, lançou seu segundo livro de poemas pela editora Patuá, o "Palavra Árvore". Para entrevistá-lo, convidei a coordenadora de projetos sociais da Fundação Demócrito Rocha e doutoranda na USP, Lia Leite.
O POVO - Acho fascinante e curioso o seu trajeto de migração e me pergunto como um autor saído de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, escreve um livro tão repleto de temas e linguagens nordestinas - com direito à famigerada "vaia cearense" em dado poema. Qual a sua relação com a terra ou, talvez, o desterro?
Atílio Bergamini - A pergunta me faz lembrar de Sergio Buarque de Holanda. No Brasil somos uns desterrados de nossa terra, ele dizia. E lembro também que os primeiros organizadores do Sarau da B1, no Jangurussu, chamavam a si mesmos de "Poetas de Lugar Nenhum". Esta autodenominação denunciava a exclusão e a invisibilidade sofridas por eles. É por aí. A tentativa de construir lugares para viver, trabalhar, amar, é bastante dificultada para muita gente no Brasil. Na minha experiência, um outro sentido de desterro tem a ver com a linguagem literária. Diz respeito à sensação de falar "como estrangeiro" ou "como penetra" a minha língua materna. Quem dirá escrevendo! Quando escrevo sou um estrangeiro, um penetra, um desterrado na literatura. Retomando o fio principal da pergunta: procuro escutar e ler as levadas dos diversos lugares de cada lugar por onde tenho vivido. Faz tempo que vivo no Ceará e portanto as linguagens por assim dizer nordestinas me constituem. As escutas e as leituras que vim fazendo se tornam minha escrita. No caso desta entrevista, vale referir especialmente a releitura que faço sempre de poetas cearenses, que, aliás, escrevem aqui, mas não são necessariamente daqui - e, portanto, quando falo em "Nordeste", busco menos uma série de virtudes abstratas e ideológicas do que gestos específicos, singulares de cada poeta que por aqui anda escrevendo. Me interessa pensar maneiras como as palavras agem em cada corpo. Falei do Sarau da B1, mas também leio e releio bastante a Antonia Kanindé, a Auritha Tabajara, o Carlos Nóbrega, o Dércio Braúna, a Érica Zíngano, a Kah Dantas, o Léo Prudêncio, o Mailson Furtado, a Nina Rizzi, o Poeta de Meia-Tigela, a Sara Síntique, a Suene Honorato, o Talles Azigon, Valéria Lourenço, Virna Teixeira, sem falar dos cordelistas, da Padaria Espiritual, de Patativa, de Ednardo e assim vai. Ah, outra coisa: a sala de aula e as ruas de Fortaleza, já que sou professor e gosto de perambular pela cidade, são espaços de escuta de linguagens diversas. Essa escuta, quando possível - e nem sempre é possível (vou falar disso daqui a pouco) - também vai se tornando parte dos meus poemas.
OP - Pode falar acerca da sua pesquisa sobre narrativas de genocídio e como esse assunto aparece na sua poesia?
Atílio - Pensadores como Abdias Nascimento, Darcy Ribeiro e Davi Kopenawa mostram que o Brasil se constitui com a aniquilação de milhares de povos. As histórias contadas a respeito da formação de uma nação por meio do extermínio de povos circulam pouco, até mesmo não circulam nada, e, quando circulam, quase não são escutadas. Ou, pior, são histórias contadas ao avesso: com tons de heroísmo e até banalizando o assassínio. Isso me parece um problema - ali onde uma história não é bem contada e escutada é o lugar no qual os grandes proprietários de terra, meios de comunicação, meios de produção, posições políticas e fluxos financeiros distorcem a realidade. O problema é quando vamos aceitando esta distorção como um bom jeito de pensar o mundo e a nós mesmos. Enfim, quero dizer que um silêncio, uma censura, um "defeito" de escrita são sintomas de um conflito social resolvido violentamente - ou seja, não resolvido. O romancista argentino Juan José Saer escreveu que uma tradição importante dos escritores do século XX - ele se referia a Joyce, Woolf, Proust, Borges etc. - criou um círculo de "miradas semienceguecidas" em torno de uma catástrofe comum, que quase ninguém consegue entender. O desafio do escritor do século XX teria sido, disse Saer, narrar a falta de compreensão, narrar as estratégias de não-narrar, de não-ver. Enxergar um pouco de realidade numa sociedade constituída por poderes tão concentrados custa um trabalho e uma paciência enormes, muito além do trabalho e da paciência que a linguagem exige desde sempre. A tarefa apontada por Saer continua a mesma no século XXI? Não sei. É algo que estou tentando pensar nas pesquisas que faço, assim como na literatura que escrevo. Machado de Assis tem sido um guia para pensar estas questões. Ele conheceu o Brasil escravista como poucos. Foi uma testemunha atenta e profunda das ambivalências subjetivas daquele horror, que ainda vai exigir de nós muito trabalho com as palavras.
OP - O que se observa, na maioria de seus poemas, é um relato de revolta. Neles, a indignação social e o desalento íntimo coexistem, sem isolamento, num contexto de pandemia e afastamento social. Contudo, a vitalidade da esperança aparece como uma espécie de semente que germina em Palavra Árvore (2022). Você acha que, atualmente, a literatura e as pessoas já podem voltar a conjugar o verbo esperançar?
Atílio - Uma das formas das lutas pela vida é bem contar histórias. Mas que histórias? Que formas e temas elas têm? Quais têm sido o vocabulário e os conceitos usados? E o tom? Quem narra? Com quem o leitor implícito se identifica? Em cada contexto dado, quais são as "táticas" e "estratégias" de uma história bem contada? Como ler ou escutar bem uma história? Quais suportes usar para contar estas histórias? Que mundo é inventado a cada vez pela interação dinâmica e conflituosa entre os poderes sociais, as lutas pela emancipação e as histórias milenares que nos cabe recontar? As respostas a estas perguntas só podem ser dadas, e sempre de modo provisório e especulativo, por muita gente trabalhando de maneira emancipada, livre, curiosa, inquieta, com paixão, com autonomia. O mundo regulado pela produção de valores abstratos esmaga ou tenta esmagar estes modos sutis de ir resgatando mundos a partir de outras lógicas. Mas existem palavras, formas e ideias do "passado" que são mais atuais agora do que foram quando "aconteceram". A obra de Luiz Gama, o grande poeta abolicionista, advogado, jornalista, é mais atual hoje para muita gente do que foi para boa parte da sociedade brasileira do século XIX. Mas, assim: meu livro Palavra árvore é dedicado à memória de Andressa Barbosa de Almeida, que lutou pela igualdade étnico-racial, pela emancipação por meio da leitura e da escrita, pela auto-organização dos estudantes. A partir daí, dá para entender porque o livro pode ser lido - ou pelo menos foi escrito - como uma tentativa de fabular esperanças. Inicia com uma atmosfera meio distópica e termina com árvores brotando, só que "ainda não vimos" estes brotos. A esperança aparece no livro de diversas maneiras: como ingenuidade, mercadoria, esquecimento, memória, projeto, cuidado, revolta, distopia, utopia. E o corpo das personagens vai sentindo os efeitos de escutar e pensar a palavra esperança.
OP - Em Sumário Minério (2019), seu primeiro livro, você escreveu que "nada justifica um poema" e, no entanto, segue no trabalho operário do verso, na batalha pela conquista da cidadela da linguagem… Você tem alguma preocupação quanto à "finalidade" de um poema ou a poesia é um fim em si mesma?
Atílio - Sumário minério é composto por poemas que formam um enredo, iniciando num outono tomado por ecos e frases feitas. "Nada justifica um poema" é um verso que se move no curso dessa ironia. Não sei se como batalha - será? Acho que compreendo a ideia heideggeriana que perpassa a pergunta, aliás, muito boa. Mas e se, ao passo em que a sociedade da mercadoria devasta os caminhos entre as palavras, nossas poesias e sonhos inventassem caminhos entre as palavras, como argumenta Davi Kopenawa? Também penso em ideias como as de Ursula K. Le Guin: e se as histórias que contamos fossem uma espécie de cesto no qual guardamos tudo o que o mais precisamos para viver? Mas, é claro, as perguntas que faço para os livros que leio, as pessoas que escuto, as tentativas ao mesmo tempo serenas e desesperadas de encontrar formas literárias para dizer a revolta, tudo isso é, como a pergunta coloca, "trabalho operário": estudar, analisar e praticar, errando mais do que acertando, os possíveis e impossíveis da arte. A poesia de Sumário minério está sempre tentando compreender como "o ódio e outras metáforas piores" nos constituem e como as metáforas do ódio podem ser retrabalhadas para tocarem os corpos de outro modo, sem tanta violência ou apenas com a violência necessária para que a vida pulse. Mas, diz um poema, "resposta pronta não há". Retornei ao Sumário minério tendo em mente a pergunta feita e verifiquei que, no livro, a poesia serve e não serve para muita coisa: versos servem para apagar a memória do assassinato dos povos, versos "já nada podem", versos são uma mensagem de SOS; são reescritas de outros versos, são um desencontro com quem lê e são uma "ficção morta"; também são "menos do que palavras", e a "cultura da minha fúria", e a desistência pura e simples; mas podem ser uma enorme confusão, uma reza de luto e socorro, um sopro sensual que percorre nossos pelos eriçados; e modos de "engambelar" a si mesmo, e modos de um quero-quero fazer cocoricó, e modos de a gente se perguntar como vamos cuidar uns dos outros "depois do genocídio". Acho que fica visível: as maneiras como a sociedade se organiza - e sobretudo se desorganiza - para usar poemas me interessam muito. Parte do trabalho de escrever é diretamente determinado, quer se queira, quer não, pelos modos de ler estruturados em cada época. Fico sempre perguntando: como as palavras tocam as diferentes pessoas? Como cada palavra, cada sílaba, cada som ressoa em cada vida singular? Fico pensando: será que alguém que escutou muitos xingamentos formulados em palavras nas quais uma determinada sílaba, digamos, "bó", aparece, sente um mal-estar difuso toda a vez que escuta a palavra bola? Nesse caso, a palavra não representa apenas uma coisa no mundo mas acomoda um afeto, uma história. Como os poderes tentam controlar as palavras que nos constituem e os afetos que se ligam a elas? O que acontece com aquelas pessoas que quase não têm histórias e palavras? Como escreveu Machado certa vez: um escritor precisa estudar a personalidade das pessoas ficcionais que cria, observar atentamente a sociedade em que vive e fundir isso tudo com o conhecimento prático da composição literária.
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"Palavra Árvore"
Onde: editorapatua.com.br
Quanto: R$ 45
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