Rua do Pocinho, número 33, Centro de Fortaleza. O trajeto até o endereço do Palácio Progresso é marcado pelo frenesi das semanas finais de dezembro. O cinza do ponto comercial recebe o contraste dos anúncios expostos na recepção e um panfleto específico anuncia o motivo da visita: o pequeno papel traz o nome "Ateliês do Pocinho" em evidência e lista os nomes de Azuhli, Artur Bombonato, Diego de Santos, Gustavo Diogenes, Igor Gonçalves, Marco Ribeiro, Najja e Sérgio Gurgel.
O documento sinaliza iniciativa que se expande pelos andares do imóvel, realizada pelos agitadores culturais citados. Os artistas em questão migraram os próprios ateliês para a construção da década de 1960, símbolo do movimento moderno cearense, idealizada pelo arquiteto, professor e pesquisador José Liberal de Castro. Desta maneira, se fortaleceu um coletivo que busca ocupar o lugar com arte e apresentar a produção ativa de nomes locais. O público também é convidado a fazer parte desse processo, inicialmente de maneira pontual. A primeira experiência de visitação aberta foi divulgada na mídia e redes sociais como Open Estúdios do Pocinho, evento pensado para aproximar os visitantes dos inventores. O momento aconteceu no dia 16 de dezembro de 2022.
Artista visual Sérgio Gurgel explica que eles funcionam como uma "grande comunidade". Todos trabalham em salas separadas, espaçadas pelos corredores, mas se encontram para compartilhar ideias e vivências. Às vezes, pode ser apenas uma reunião casual, pausa necessária para o café e ideal para conversar sobre amenidades do dia a dia. Eventualmente, entretanto, pode caminhar para um viés mais profissional, com partilha de teorias e técnicas. Eles desenvolvem uma espécie de refúgio artístico em localização que abraça tantos outros ofícios, cercada por importantes equipamentos culturais do Estado, a exemplo do Cineteatro São Luiz. "Essa ocupação existe em outros lugares e aqui aconteceu de uma forma bem orgânica. Tem uma ligação histórica de ocupar esse local novamente. Cada ateliê parece um mundo", enfatizou Sérgio na ocasião.
A versão de inauguração do Open Estúdios possibilitou que interessados pudessem compreender a dinâmica de oito criadores, em uma proposta democrática e casual. Também se tornou uma oportunidade para aquisição de obras, com perspectiva única sobre processos de criação e práticas artísticas. O objetivo é que o projeto se expanda e, gradualmente, possa receber visitas de profissionais e curadores da área, assim como cursos e projetos, mediante agendamento. Após participar do evento, o V&A compartilha um pouco da experiência e do particular de cada artista presente:
Azuhli (@azuhli)
O percurso do Vida&Arte começa no quarto andar, na porta do número 409. "Tudo aqui já foi um sonho" é a frase pendurada no início da oficina da artista Azuhli, anagrama e pseudônimo de Luiza Veras. A sala, adquirida há pouco menos de um mês, é a representação de uma virada mais independente para a fortalezense. "É uma questão de liberdade que estou tentando conquistar, para conseguir produzir uma coisa menos voltada para o comercial, conseguir entrar mais nas produções conceituais e entrar mais no institucional", conta.
A jovem se fixa no edifício após transitar por diversas galerias da Capital para, também, obter mais consistência no ritmo de produção. O que traz senso de pertencimento ao então novo ambiente são as cores vibrantes das obras, com tonalidades guiadas pelo pôster "System of Colors", encaixotado na bagagem de sua passagem pelo México.
Há, também, experimentações com gravuras, materiais de pinturas e a lembrança de memórias vivas retratadas por uma máquina fotográfica disposta em uma das prateleiras. Para Azuhli, abrir momentos para receber pessoas, convidar para uma café - ou cerveja - e engatar um bate-papo sobre arte pode desconstruir a romantização do artista e engajar o senso coletivo. "As pessoas podem esperar ver um pouco do processo (de criação), do que eu já expus em outros lugares. O ateliê de um artista é o lugar mais solitário possível, onde a gente passa a maior parte do tempo mexendo com a criatividade. É entrar dentro de si", compara.
Diego de Santos (@_diegodesantos)
Subindo o elevador até o 7º andar, é possível encontrar o ateliê de Diego de Santos. A reportagem é recepcionada pelo toque de "Ondas", do cantor Cassiano. "É um dos maiores nomes da música preta brasileira", caracteriza Diego. Sentado em uma das cadeiras, ao lado do violão azul - instrumento que toca com frequência -, o cearense rememora a trajetória artística. Ele relembra o primeiro ateliê na casa em Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), e a passagem para estudar no Rio de Janeiro, episódios que desembocam nas produções exibidas na sala.
"Voltei para Fortaleza na pandemia, quando teve os editais emergenciais. As políticas públicas possibilitam experiências que têm efeito a longo prazo, sobretudo a Aldir Blanc. Inscrevi algumas obras para os acervos do Governo do Estado e, com o dinheiro, investi nesse ateliê", explica. Diego transforma materiais do cotidiano - sacos de ráfia, faixas de venda de lotes e apartamentos - para pontear obras que tocam no discurso de acesso à terra e moradia. "Venho pensando como a produção mobiliária vai se estabelecer nessa paisagem. Começa pelo litoral, nessa tentativa de atualização do paraíso que o Nordeste tem. Nós construímos cada vez mais, só que o entorno não é discutido".
As séries mais recentes de quadros do artista têm como base a paisagem: o mar, o sol, a faixa de areia. Em cima, acontece a sobreposição de elementos como as faixas de publicidade imobiliária. "Você tem a ideia de apagamento, exploração, não consegue ver direito o horizonte. Cada vez mais vai se urbanizando e crescendo, acelerando a miséria, a violência. Esse paraíso que se espera tanto não tem", reflete.
Igor Gonçalves e Najja (@igorgoncalvestt) e (@najjatattoo)
Já no nono andar, a primeira parada é no estúdio Oculto Tatuagens, comandado pelos tatuadores Igor Gonçalves e Najja. Já do lado de fora é possível ver alguns dos flashes - desenhos impressos em papel ou papelão - que foram disponibilizados na data. As imagens retratam figuras de flores, borboletas, rostos de homens e mulheres. Ao entrar na sala, o movimento já se torna perceptível. O barulho da máquina de tatuagem se mistura com o som da música ambiente, da mesma maneira que diferentes quadros se unem em uma das paredes.
"Eu tenho um trabalho mais voltado pro old school americano e busquei revisitar quadros que eu gosto muito, focando em desenhos de fácil identificação", detalha Najja ao especificar a proposta dos flashes. Do outro lado da sala, perto de alguns visitantes, Igor tatua um dos clientes. De acordo com a colega, o tatuador tem um trabalho mais voltado para a hachura, técnica artística utilizada para criar efeitos de tons e sombras a partir do desenho de linhas paralelas próximas. Um dos grandes benefícios do espaço, comenta a artista, é a paisagem. "Aqui dá para ver o Mara Hope, a Catedral, fora que dá para ver também o que está acontecendo na Praça dos Leões, toda a movimentação", comenta Najja.
Gustavo Diogenes (@gustavodiogeness)
Na sala de número 926, o artista visual Gustavo Diogenes compartilha com a reportagem um pouco da transição até a chegada ao Palácio Progresso. "Quis aquele espaço grande no Centro, achava que ia ter alguma repercussão no meu trabalho. Comecei a sondar devagarinho e consegui pegar essa salinha aqui".
O espaço de Gustavo mostra experimentações com pinturas, gravuras, xilogravuras e gravuras em metal, trabalho viabilizado por meio do Labgrav. Para ele, a convivência com os demais artistas impacta a produção de cada integrante do coletivo. "Tem uma troca muito boa com relação a tudo, materiais, exposições, pensar projetos e pesquisas. Repercute muito, inclusive, no trabalho um do outro, eles conversam. Um vai alimentando o outro e a gente acaba sendo um de cada", afirma.
Sérgio Gurgel e Marco Ribeiro (@_sergiogurgel) e (@marcoaoribeiro)
No 10ª andar está o ateliê de Sérgio Gurgel, o primeiro dos artistas do Pocinho a ocupar o Palácio. Em meio às obras, um ponto que chama atenção é a lacuna que divide o espaço em dois. "O proprietário disse que eu podia abrir outra porta, só não disse o formato. Então eu mesmo fui picaretando", especifica. A brecha em dimensão circular funciona para o artista como uma "fenda" que simboliza o "rastro" da sua passagem pelo imóvel.
Por meio desta abertura, é possível ver espelhos, quadros, intervenções em distintas superfícies. Cada canto do ambiente guarda um pouco dos encontros de Sérgio. "Para mim, sem o encontro o meu trabalho não acontece", cita. Nascido em Acopiara, a 352 km da Capital, Sérgio menciona que as obras surgem no resgate de objetos que foram abandonados.
Ele recupera experiências de anônimos e familiares por meio de documentos fotográficos e escritos. O processo é, também, uma forma de ressignificar a ligação com a temporalidade. "Comecei a ter essa relação de paixão. Às vezes recebo alguns já com histórias e com outros eu vou vou decifrando, com as marcas, algumas narrativas. Vou criando camadas, como se eu tivesse criando uma segunda ou terceira pele", informa.
No Open Estúdios, a sala de Sérgio também recebeu a produção do artista Marco Ribeiro, amigo de longa data. Apesar de não ter ateliê fixo no edifício, Marco é presença constante na convivência com os demais companheiros de profissão. "O trabalho dele conversa com o meu nessa questão do tempo, mas são linguagens completamente diferentes. Marco tem trabalho bem abstrato, com geometria, palavras, cores", considera Sérgio.
Artur Bombonato (@otanobmob)
O Vida&Arte finaliza a visita no ateliê de Artur Bombonato, situado na sala 1106. Na data em que esta matéria é publicada, o artista já deixou o espaço ocupado por quatro anos no imóvel a fim de migrar o trabalho para São Paulo. "Os trabalhos que estão aqui eu desenvolvi ao longo do ano passado e desse ano. São uma série que eu chamo de "Alhures", espaços que têm alguma ambiguidade de habituar esses portais. Trabalho muito com o YouTube como fonte, e filmes. É como se eu fosse um voyeur, um curioso que está se interessando pelos espaços. Pego imagens de vídeos e corrompo, fica uma coisa mais abstrata", explica o artista.
Ateliês do Pocinho
Onde: Palácio Progresso (rua do Pocinho, 33, Centro)
Mais infos: Instagram
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