Ao menos sete perfurações marcam agora o quadro “Mulatas”, do artista brasileiro Di Cavalcanti (1897 - 1976). A obra modernista criada nos anos 1960 ganhou, em 2023, outro valor simbólico: o rastro da ameaça à democracia. No último domingo, 8, a invasão de terroristas apoiadores de Jair Bolsonaro (PL) ao Palácio do Planalto, ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal causou danos ao patrimônio público e destruiu, também, parte do acervo artístico. Pinturas, vitrais e esculturas históricas, de Marianne Peretti a Oscar Niemeyer, entraram na cota de vandalismo.
“Quando acontece um ato de vandalismo como esse, que depreda uma obra de valor econômico e sobretudo simbólico, algo de muito errado acontece nesse País. É como se atirássemos no próprio peito, matando aquilo que simboliza um modo de vida caro ao País e a própria ideia de nação”, define a pesquisadora Kadma Marques.
Doutora em Sociologia da arte e colunista do Vida&Arte, Kadma aponta que o acervo artístico alvo dos invasores representa “modelos de brasilidade” e são bens de valor inestimável para a nossa história.
O descaso em relação às obras em Brasília, porém, é anterior ao último domingo. Na semana anterior ao ato golpista, Janja Lula, esposa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), denunciou as condições que encontrou o Palácio do Planalto.
Residência oficial do presidente da República, o prédio foi inaugurado em 1960 e até 2016 reunia mais de 140 quadros e 17 esculturas. Durante a estadia de Bolsonaro, algumas foram postas em “reserva técnica” e deixaram de ser expostas - caso da pintura “Orixás”, da artista Djanira da Motta e Silva. Foram alegadas “motivações religiosas” para que o trabalho fosse retirada do Salão Nobre da Casa Presidencial.
A museóloga Graciele Siqueira, diretora do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará, chama atenção para a educação patrimonial e seu papel de pensar o passado, presente e futuro da sociedade.
“É obrigação do Estado cuidar da memória e do Patrimônio Cultural brasileiro e, a partir do momento que elas estão dentro dos espaços públicos, é preciso pensar como salvaguardar da melhor forma”, defende Graciele. “Mas isso não quer dizer que podemos chegar nessas instituições e expor (as obras) a danos materiais, a vandalismo, a destruição”, atenta.
Desde 2009, quando Lula cumpria seu segundo mandato como presidente, o Palácio do Planalto ganhou uma comissão responsável pelo acervo artístico. De lá para cá, a Comissão de Curadoria para as Obras de Arte, a Arte Decorativa e o Mobiliário dos Palácios da Alvorada e do Planalto tem atuado na limpeza e conservação das obras.
Max Perlingeiro, curador de arte e galerista da Multiarte, localizada em Fortaleza, frisa que as peças são patrimônio do povo brasileiro e não pertencentes a governantes. Defende, ainda, que “toda responsabilidade deve ser apurada”. “A ação de recuperação jamais apagará de nossas mentes a destruição e o desrespeito com a arte e o nosso patrimônio que por mais de 60 anos encanta aos visitantes que vão a estes espaços”, argumenta.
Vulnerabilidade
"A dilapidação do patrimônio público e da consciência livre do nosso povo não será tolerada", reiterou Margareth Menezes, ministra da Cultura, na manhã da segunda-feira, 9. A declaração converge com o pronunciamento do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de condenar os atos golpistas.
"De forma a que ninguém nunca mais ouse fazer o que fizeram hoje se fingindo de nacionalistas, de brasileiros", enfatizou o presidente, sobre as punições aos envolvidos. Para o advogado Bruno Queiroz, o ocorrido em Brasília demanda atenção.
"Os episódios demonstram a enorme vulnerabilidade do patrimônio histórico e cultural no Brasil e denotam medidas urgentes para a proteção do patrimônio público", alerta ele.
Crítico à Lei 13.260/2016, conhecida como Lei Antiterrorismo, avalia que a legislação deixa brechas. "No Brasil, a Lei 13.260/2016 que trata sobre o crime de terrorismo fora editada cinco meses antes das Olimpíadas no Rio de Janeiro, por evidente pressão dos organismos internacionais", contextualiza. Nela, o terrorismo é definido como prática de "um ou mais indivíduos dos atos previstos nesta lei, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública", ou seja, embora a violência seja o método, a legislação em vigor no Brasil não abrange os atos praticados na invasão bolsonarista.
"A legislação que trata do crime de terrorismo e que prevê penas de até 30 anos para as condutas nela previstas exclui do enquadramento penal os casos ocorridos em Brasília (no último domingo)", aponta Bruno. Mas isso não significa que os invasores sairão impunes, outras tipificações criminais como golpe de Estado, organização criminosa, dano ao patrimônio público e alterar a estrutura de edificações protegidas por lei são alguns crimes citados pelo advogado.
Reconstruir o que for possível
Além da subjetividade dos artistas que as compuseram, obras de arte representam retratos do seu tempo. Dada a importância simbólica, a cultura recorrentemente esteve na mira de regimes ditatoriais no Brasil e no mundo. Dos nazistas que promoveram "a grande queima de livros" em 1933 às décadas de censura na ditadura militar no Brasil, a arte representa ameaça em contextos autoritários.
Um novo capítulo desta história foi escrito neste domingo, 8, com a destruição do patrimônio cultural de Brasília. Desta vez, no seio da democracia brasileira, por propagadores extremistas que, entre outras reivindicações, não aceitam o resultado das urnas.
Em nota, o diretor de Curadoria dos Palácios Presidenciais, Rogério Carvalho, admitiu ser "muito difícil" a recuperação dos bens. "O valor do que foi destruído é incalculável por conta da história que ele representa. O conjunto do acervo é a representação de todos os presidentes que representaram o povo brasileiro durante este longo período que começa com Juscelino Kubitschek. É este o seu valor histórico", declara Carvalho. "Do ponto de vista artístico, o Planalto certamente reúne um dos mais importantes acervos do país, especialmente do Modernismo Brasileiro", completa.
Segundo anunciado pela ministra da Cultura, Margareth Menezes, o Instituto Nacional do Patrimônio Histórico (Iphan) será encarregado de realizar "a avaliação e informação da destruição cometida nos prédios do Palácio do Planalto, Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal e demais espaços tombados". Ela completa: "O patrimônio histórico material e imaterial do Brasil foi barbaramente atacado e em parte destruído".
Para Antônio Vieira, artista plástico e professor de restauro na Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho, os danos atentam contra a pluralidade do povo brasileiro.
"As obras expostas nos espaços de circulação do Planalto foram criadas por seus artistas para serem apreciadas de forma coletiva. O ato provocado por parte dos 'bárbaros bolsonaristas' demonstra a falta de educação, respeito e civilidade para com a história, memória e o patrimônio do nosso país", pondera Vieira.
O professor diz que o processo de restauro, quando possível, será minucioso, em especial da obra "As Mulatas" (1962). "Serão necessários procedimentos técnicos, aparentemente de reentelamento fio a fio para recompor as tramas do tecido", explica. De acordo com ele, as obras agora passarão por avaliações para depois seguir para o processo de intervenção restaurativa.
"O maior legado de um artista é a sua obra, pois através dela ele se reconecta com o tempo e materializa o seu processo imagético no espaço. As obras vandalizadas nunca mais serão as mesmas, são como a figura dos traumas que carregamos na vida! Dessa forma observo como precisamos cuidar melhor e sermos mais atentos aos nossos artistas, bem como às suas produções, seja de qualquer lugar ou parte do País", lamenta Antônio.
Obras atingidas
Conheça peças danificadas e furtadas durante invasão de Brasília:
- Obra "Bandeira do Brasil" (1995), de Jorge Eduardo
- Escultura de parede em madeira de Frans Krajcberg
- Vitral "Araguaia", da artista plástica franco-brasileira Marianne Peretti
- Relógio de Balthazar Martinot (foto), presente da Corte Francesa para Dom João VI, foi encontrado completamente destruído
Músicos
Outro dano a uma obra de Di Cavalcanti chegou às manchetes recentemente: a tapeçaria "Músicos" teria desbotado após o ex-presidente Bolsonaro expô-la ao sol ao mudar a obra de lugar no Palácio da Alvorada para acomodar equipamentos de lives, conforme a atual primeira-dama Janja Lula.
Valores financeiros e simbólicos
Uma das obras danificadas pelos ataques terroristas ocorridos em Brasília no domingo, 8, o painel "As mulatas", do pintor carioca Di Cavalcanti, é avaliada entre R$ 20 milhões e R$ 50 milhões, estimam especialistas em artes ouvidos pela reportagem. O painel, que fica no Palácio do Planalto, sofreu no mínimo sete perfurações feitas por criminosos na ocasião da invasão. De acordo com levantamento do próprio Palácio do Planalto, o valor está estimado em R$ 8 milhões, podendo "alcançar valores até 5 vezes maior em leilões".
A precificação da obra — descrita pelo governo como "a principal peça do Salão Nobre" do Planalto — é uma operação que demanda "complexidade", como explica Sérgio Sobreira, professor associado da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Isso pelo painel ser um item de patrimônio público, fora do mercado.
Como explica Sérgio, o processo de mensurar o valor da obra "envolve a necessidade de ver o valor que obras de Di Cavalcanti ocuparam no mercado nas últimas vezes em que foram precificadas". Ele cita a presença do painel "Bumba Meu Boi" na feira SP-Arte, em 2019, que atingiu o valor de R$ 20 milhões na ocasião. "Como elemento de partida, a obra 'As Mulatas' teria um preço a partir desse valor, até por se tratar de uma obra maior e mais importante pela dimensão histórica que tem", pondera.
Na avaliação do professor, a obra pode valer entre R$ 30 milhões e 50 milhões. A estimativa se dá, conforme Sérgio, "pela dimensão histórica, pelo fato de ser uma obra que é representativa de toda a obra de Di Cavalcanti", ressaltando "o enaltecimento das nossas raízes".
"Ela fala da condição de mestiçagem em uma perspectiva que afirma que o nosso caldo cultural deve ser visto como algo louvável e de enorme contribuição, sem negar todas as contradições e que o processo que favoreceu isso no Brasil foi a tragédia da escravidão. Há um resultado em termos de identidade e Di Cavalcanti foi quem melhor capturou esse sentido", analisa.
Proprietário da Sculpt Galeria, o engenheiro e colecionador Rodrigo Parente destaca o ataque à obra, que define como "icônica", como "um terrível atentado ao nosso patrimônio, que é pouco conhecido da grande população". "Estimo dizer que um painel tão significativo como esse deve valer no 'mínimo' R$ 5 milhões o metro quadrado, sendo imensurável o valor", avalia. A partir desse dado, o galerista calcula que o preço estimado pode ser entre R$ 20 milhões e R$ 30 milhões.
Rodrigo ainda ressalta a importância do acervo do Palácio do Planalto como um todo, compartilhando ter relação de memória com itens que compõem o local e afirmando repudiar "totalmente os atos que aconteceram neste domingo". "Dentre os artistas visuais que têm suas obras no Palácio, queria destacar alguns, dentre muitos: Di Cavalcanti, Djanira , Cândido Portinari, Volpi. No mobiliário, temos Sergio Rodrigues, Oscar Niemeyer, Joaquim Tenreiro, Scapinelli e Jean Gillon", lista.
Os especialistas lembram que, além do valor financeiro estimado da obra, há inegável simbolismo no ataque. Rodrigo, por exemplo, ressalta que o trabalho de restauro será pago pelo próprio povo brasileiro. Sérgio pondera que o ataque "reflete o estado de ignorância e de indigência intelectual e moral que nós passamos nos últimos quatro anos".
"Do ponto de vista simbólico, esse ataque reflete esse ódio que essas pessoas têm de tudo aquilo que pode representar algum nível de evolução humana em direção à civilização. São pessoas movidas por ódio, querem destruir tudo que elas não compreendem, não entendem e, por consequente, não aceitam", aponta Sérgio, que pede punição "exemplar" para os envolvidos, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro. (João Gabriel Tréz)
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