Há um mês do início do Carnaval de 2023, a movimentação dentro das sedes dos maracatus fortalezenses é frenética. As agremiações se preparam para o retorno dos tradicionais cortejos na avenida Domingos Olímpio em cenário considerado desestimulante. Após dois anos sem desfiles presenciais, organizações locais lidam com o agravamento de problemas financeiros e atraso nos recursos disponibilizados pela Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor).
Neste ano, parte dos recursos é proveniente do Edital de Concessão de Apoio Financeiro ao Desfile das Agremiações Carnavalescas na Avenida Domingos Olímpio de Fortaleza. De acordo com o documento veiculado no dia 7 de dezembro de 2022, o montante de R$ 1.030.000,00 será dividido entre 34 projetos de agremiações carnavalescas - entre blocos, cordões, maracatus, escolas de samba e afoxés -. Após a divulgação do resultado preliminar da habilitação jurídica, realizada na última quinta-feira, 12, 28 proponentes foram habilitados, enquanto seis foram inabilitados por descumprimento de exigências do edital.
Porta-vozes dos blocos apontam demora no direcionamento do orçamento, que ano após ano costuma chegar apenas na véspera das apresentações. Para Carlos Brito, presidente e fundador do Maracatu Nação Pici, a conjuntura é reflexo da desvalorização da prática cultural considerada Patrimônio Imaterial de Fortaleza. "Esse ano acho que vai ser o último ano que vou levar a agremiação para a avenida. A gente gasta muito", lamenta. Nas festividades de 2021 e 2022, o Nação Pici se manteve com o pouco que sobrava da quantia adquirida pela Lei Aldir Blanc. A maior divisão do dinheiro foi destinada para o custeamento das lives, meio encontrado para manter as atividades durante o período de restrições sociais. "Sou funcionário público aposentado e mantenho o grupo com o meu salário, atolado de dívida, pedindo dinheiro emprestado. O dinheiro da Prefeitura só (sai) uma semana antes", pontua.
A entrevista para a reportagem é feita enquanto outros colaboradores continuam a aprimorar as vestimentas na sede da Nação Pici, rotina que tende a se estender das 10h às 03 horas da manhã. O esforço é para manter pulsante uma história que começou há exatos vinte anos como um projeto de escola e está na rua desde 2009. Hoje, o maracatu é formado por pessoas de regiões vizinhas, como Caucaia, e bairros da Capital. "É muito cansativo, a gente espera ser valorizado, que os órgãos públicos valorizem a gente, porque a gente sustenta essa cultura nas costas. Eu não recebo verba de ninguém, a única coisa que vem é dos editais. Tem que ter Carnaval na veia, porque se não tiver não dá para levar. É o amor ao ofício que sustenta a gente, porque é muito árduo", complementa Carlos.
O novo enredo da agremiação, performado por aproximadamente 300 pessoas, retrata um dos principais pontos base do maracatu: a valorização da cultura afro-brasileira. Com ensaios que acontecem semanalmente aos sábados, o Nação Pici lança luz sobre Carolina Maria de Jesus, primeira escritora negra brasileira, com enredo nomeado como "Carolina de Jesus, As Letras nas Favelas".
Entre loas e batuques
O folguedo começou a ser difundido no Carnaval do Ceará por volta de 1930, quando Raimundo Alves Feitosa, conhecido como Raimundo Boca Aberta, idealizou o Az de Ouro, em 1936. Para Teonildo Lima, presidente do Maracatu Rei Zumbi, Raimundo Boca Aberta é a representação dos "gênios" que existem por trás da festividade. A inspiração para o festejo veio das centenas de maracatus de Pernambuco que surgiram a partir dos terreiros e foram difundidos nos demais estados brasileiros.
O maracatu cearense nasce nas comunidades periféricas e costuma ter baque lento, num ritmo que incorpora a voz do intérprete com tambor e zabumba. É caracterizado, também, pelo negrume feito com mistura de fuligem e vaselina. A prática cultural segue como sinônimo de resistência cultural e traz indígenas, negros, preto-velhos, orixás, reis e rainhas nos atos dos incontáveis brincantes.
O enredo de 2023 é intitulado "Os Maracatus de Fortaleza Que Tem Nomes de Cartas de Baralho". A agremiação reverencia blocos como Az de Ouro, Az de Espadas, Dois de Ouro, Rei de Paus e Dama de Ouro a partir de pesquisa realizada em conjunto com o músico e pesquisador Calé Alencar, quem considera um "guerreiro" pelo maracatu. "Isso é cultura popular, são vidas e famílias, passa de geração em geração", define.
Teonildo relata dificuldades para manter as atividades do Rei Zumbi, considerando os últimos dois anos como "lamentáveis". Ele pontua que falta apoio por parte do poder público e da mídia, o que contribui para a desvalorização do Carnaval de rua. "O pré-Carnaval você já vê outro olhar, tem patrocínios de grandes empresas, os locais são privilegiados". Para tentar anular os custos dos meses de preparação, o presidente recorre a empréstimos. "Culpa dos nossos representantes que deixam para última hora. Todo ano sabe que vai ter Carnaval, porque não muda para que os projetos sejam lidos alguns meses antes. Vão liberar (a verba), na véspera, que é o que acontece todos os anos", aponta.
Questionada pela reportagem sobre o andamento do edital, a previsão de disponibilidade dos recursos financeiros e as medidas destinada aos maracatus, a Secultfor respondeu apenas que "foi divulgado o resultado preliminar da habilitação jurídica do edital de 'Concessão de Apoio Financeiro ao Desfile das Agremiações Carnavalescas na Avenida Domingos Olímpio de Fortaleza (2023)'".
Ecos na avenida
Mesmo com os recorrentes impasses, as agremiações continuam somando forças para levar seus estandartes aos espectadores. "Eu costumo dizer que a gente começa o Carnaval quando as fogueiras se apagam", afirma Márcio Santos, vice-presidente do Vozes da África. "Quando termina o Ciclo Junino, a gente já começa a pensar o Carnaval em julho, para que o enredo seja lançado em novembro, mês da Consciência Negra e de lançamento do Vozes da África".
Ao longo dos meses, as pessoas se aproximam do barracão para auxiliar na confecção das vestimentas e apetrechos. Ao todo, mais de 30 pessoas estão trabalhando na elaboração dos itens. "O trabalho intensifica de janeiro até fevereiro. A gente está no barracão de segunda-feira a sábado e aos domingos nós temos os ensaios de batuque com os cantores e músicos. A gente produz essa fábrica de fantasia e ilusão", acrescenta.
Outras 350 pessoas desfilam no cortejo que, neste ano, apresenta o enredo "Água para lavar, benzer e abençoar", proposta idealizada para este momento de retomada. "É para fazer essa limpeza da avenida de todo o mal que passou e também pensar no bem comum. A água vem representada desde a parte biológica, como o ventre da mãe, até a parte ritualística, presente em diferentes religiões. É para vir abençoando esse novo ano, com nova gestão estadual e federal", sintetiza.
Aos poucos, detalha o vice-presidente, a plateia retoma o interesse do que considera a "maior festa popular" do Brasil. "Quem diz que nosso Carnaval não tem público está mentindo, a gente vê um público enorme que espera os maracatus, blocos de samba, além da comunidade", complementa. Para entoar a felicidade do retorno, Márcio reverbera os pedidos dos colegas e demanda a propagação da festividade. "É importante bater na tecla desse Carnaval de rua feito pelo povo e pela comunidade, é uma forma de reconhecimento desses artistas anônimos. Dentro do barracão de todas as agremiações carnavalescas tem um arsenal de grandes costureiras, estilistas, um leque enorme. A expectativa é trazer um grande espetáculo para o público", arremata.
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