Coletividade, solidariedade, respeito à natureza e novas formas de organização econômica e social são fundamentos da ideia de Bem Viver, que diz respeito à cosmovisão das comunidades tradicionais. No Quilombo do Cumbe, localizado a 9 km do Centro de Aracati, a máxima é cuidar do território, promover a subsistência e valorizar a identidade cultural.
Com atividades iniciadas em 2003, a Associação Quilombola do Cumbe reúne mais de 100 famílias. Desde 2017, quando passou a integrar a Rede Cearense de Turismo Comunitário, a Rede Tucum, recebe visitantes e articula atividades que perpassam passeios, hospedagens, culinária e historicidade.
"Hoje a comunidade tem uma certa resistência, mas é uma história de luta muito grande. Nós estamos fazendo 20 anos esse ano de organização", conta a presidenta da Associação, Cleomar Ribeiro da Rocha.
Hoje, o Território Quilombola do Cumbe funciona, além de áreas de moradia, lazer e trabalho, espaços de memórias, manguezais, camboas, Ilhas fluviais e o Rio Jaguaribe. São imensas áreas de carnaúba, árvores abundantes na região, campos de dunas móveis e fixas, lagoas dunares, sítios arqueológicos e faixa de praia.
Guardiões da terra
Com uma tradição escravocrata, Aracati, a terra do jangadeiro abolicionista Dragão do Mar, ergueu-se a partir do trabalho de negros escravizados em engenhos.
No Cumbe, o resultado foram as famosas aguardentes, popularizadas como "cachaças do Cumbe". O território tinha pelo menos 9 engenhos de ferro e 12 moinhos de vento. Agora, os engenhos deram lugar às fazendas de camarões, exploração aquífera e eólica, enquanto os antigos sítios foram soterrados pelas Dunas.
"Se você for ver o mapa do Cumbe é como se a gente fosse uma comunidade móvel, viemos andando. No mapa antigo, nós ficávamos perto da Foz, aí a comunidade vem andando dependendo do avanço da duna, o povo vai se afastando. A nossa Igreja, do padroeiro Senhor do Bonfim fica, bem-dizer, sozinho", conta Cleomar Rocha. Segundo lembra, quando criança, passava até cinco meses morando em cima das dunas.
"A gente nasceu 'os dentes' nesse território, há um pertencimento muito forte, uma raiz tão profunda que nem a gente sabe explicar e isso incomoda", diz. Sem desvincular luta e prazeres, o turismo comunitário Quilombo do Cumbe tem sido uma forma não só de garantir a subsistência, mas de denunciar os desafios de existir em meio a parques eólicos, exploração da natureza e turismo predatório, que só cresce na região. "Nós dizemos até que somos os guardiões", define Cleomar.
"Eu acredito que nós ainda somos as mesmas famílias, só mudam as gerações… Porém tem uns que vão saindo da comunidade. Eu digo que é um processo de expulsão", denuncia Cleomar. Para Luciana Santos, integrante da associação, isso se dá por um modelo econômico de desenvolvimento a qualquer custo.
"Você botar na cabeça do seu filho que você não pode ser um pescador, você pode sim! Nossos pais e nossos antepassados viveram nesse território, nós estamos vivendo até hoje e por que meu filho não pode viver aqui? Se ele quiser estudar também pode", argumenta Luciana. "É você cuspir no prato que comeu, que sempre lhe sustentou", define.
Como chegar no Cumbe
Opções de táxis saindo do centro de Aracati
Preço médio: R$ 25 a R$ 30
De carro próprio
Como chegar: 9,2 km via estrada da Canavieira
Rota disponível em aplicativos como Waze e Google Maps
Entre redes e bangalôs
Dormir vendo as estrelas, passear a cavalo ou de barco, comer ostras recém-retiradas e conversar com moradores fazem parte da vivência no Cumbe.
Para quem deseja conhecer o Rio Jaguaribe, há quatro opções de passeio: "Foz", "Ilhas do Jaguaribe", "Canal do Amor" e "Comer no Mato". Os passeios custam R$ 150 e são feitos pela manhã ou fim de tarde, a depender da maré. Há ainda a alternativa "Comer no Mato", que leva os visitantes à experiência de almoçar em frente ao Rio Jaguaribe.
Os mais aventureiros podem optar por Trilhas Ecológicas ou Passeios a Cavalos. As caminhadas vão de leve a moderada, podendo ser "Rio e Mangue", que explora a paisagem de manguezal, e "Arqueológica", no sítio arqueológico das dunas, passando por flora
frutífera local, com Muricis e a Azeitonas.
Hospedagem no Quilombo do Cumbe
Duas pessoas com café da manhã incluso
Quanto: R$ 110
Observação: para ficar mais de duas pessoas no mesmo quarto adicional de R$ 40 por pessoa
Hospedagens em barracas, redes em palhoça ou alpendre
Quanto: R$40 (com café da manhã)
Reservas e mais informações: (88) 99263.8648 ou www.quilombodocumbe.com
Cozinhar e acolher
Foi com a mãe, Nazaré, que a cozinheira Luciana Santos aprendeu a preparar os pratos típicos do Cumbe. Em uma comunidade onde as mulheres estão na presidência das associações, guiando barcos, pescando mariscos e educando, cozinhar é mais uma das atividades encabeçadas por ela, que também organiza a Festa do Mangue, que acontece em Dezembro.
"Eu gosto demais de cozinhar, quando os visitantes vêm para outras casas aqui na comunidade, quem cozinha sou eu. Cozinhar não é só cozinhar, mas você tem que ter o prazer de fazer aquela comida, então eu procuro dar o máximo de mim para sair boa", declara Luciana. Nos pratos, os ingredientes são selecionados: devem ser frescos e, quando possível, da região.
"Eu procuro oferecer o que a gente tem na comunidade: pescado, tanto das marisqueiras quanto dos pescadores, o marisco, que é o sururu e o buzo, que são os mais comuns", declara ela. "Tem ainda os de época que dificilmente sirvo, mas quando tem a oportunidade, sirvo. Tem os peixes que costumo servir os daqui: a Tainha e Carapeba, além de outros peixes de fora", completa.
Em 2023, a Associação Quilombola do Cumbe se prepara para abrir o restaurante da comunidade. "Estamos pensando em abrir ele esse ano, tanto para o turismo comunitário quanto para a comunidade. De início, a ideia é abrir aos finais de semana ou quando vier grupos para café, almoço e jantar. Quem sabe futuramente a gente abra diariamente", antecipa Luciana. Sobre a mãe, professora da "arte de cozinhar", aponta algo inusitado.
"Aprendi a cozinhar com minha mãe, gosto muito da comida dela. A Galinha Caipira que só ela sabe fazer, sem essa ruma de tempero pronto que às vezes você coloca. É o tempero natural que vai alho, cebola, tomate e pimenta, pronto. Hoje eu faço uma galinha caipira não igual o dela, mas também é gostosa", compartilha. "Ela não gosta muito de cozinhar, mas quando cozinha fica delicioso. Acho que tem gente que nasce com dom?", fecha Luciana.
Cumbe e as sensações que permanecem
Foram menos de 48 horas no Cumbe que deixaram gosto de eternidade. Lá, o ritmo não era o mesmo das cidades, responsável por nos tirar a atenção, a capacidade de ouvir e descansar. Na Capital, é buzina, violência, pressa e desconfiança.
No interior é outra lógica: o despertador é o canto dos animais, a hora do passeio é a hora da maré e a luz noturna é garantida pelas estrelas. Seja à beira do rio ou da mesa, acompanhada de bons mariscos, as conversas não têm hora para terminar. Neste meio-tempo, algumas descobertas: rio tem boca e braço, dezenas de espécies de caranguejo e que caipora (curupira) existe mas não precisa temer, já que basta se aliar a ela e respeitar a Natureza.
Enquanto entrevisto, me delicio com um café forte mas ao mesmo tempo doce, com gosto de casa de vó. Faço também uma caminhada até um dos trechos do Rio Jaguaribe, com água límpida e vista para o manguezal.
Escuto histórias de Luciana, Ronaldo e Cleomar, das inúmeras lutas pelo território que não apenas nasceram, mas que fazem parte. Lembro dos alertas de Yuval Harari em "21 lições para o século 21" de que mesmo cada vez mais conectados, estamos mais sozinhos. Em um passeio de barco no final da tarde em que passeamos por diversos assuntos, fizemos uso da tecnologia mais inovadora que a sociedade já teve: uma boa conversa.
Dias depois, ao ouvir as gravações das entrevistas, entrecortadas com cantos de pássaros, barulho da mata e do motor do barco, ainda consigo sentir o gosto da tapioca, o cheiro do quintal de árvores frutíferas, a caminhada no mangue e a chegada ao rio: o Cumbe é uma explosão de sentidos. Para provar que, mesmo em um Ceará cada dia mais tomado por projetos turísticos invasivos, que não respeitam a natureza e as comunidades tradicionais, há alternativa e possibilidades. Há espaços de Bem Viver.
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