Uma década marca a distância temporal entre o presente e a trágica noite que marcou a história de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. A cidade universitária se viu em holofotes nacionais e internacionais em 27 de janeiro de 2013, quando 242 pessoas perderam suas vidas após incêndio na Boate Kiss. A distância de tempo, para os familiares, parece ainda mais recente - parentes que lutam pela preservação das memórias das vítimas e para que o caso não fique impune.
Nesta quarta-feira, 25, estreia na Netflix a minissérie de ficção “Todo Dia A Mesma Noite”. Inspirada no livro homônimo da jornalista Daniela Arbex, a produção é disponibilizada quase exatamente dez anos depois do incêndio. Com direção geral de Júlia Rezende, a obra é dividida em cinco capítulos e retrata, além da investigação policial sobre as circunstâncias que levaram à tragédia, a luta por justiça travada pelos familiares das vítimas.
Na época, estudantes de cursos universitários e técnicos da Universidade Federal de Santa Maria estavam reunidos na Boate Kiss para uma festa. No show da banda Gurizada Fandangueira, um instrumento pirotécnico provocou a queima da espuma que revestia o espaço, o que liberou fumaça tóxica e levou muitos jovens à morte por asfixia.
Apesar de em 2021 ter ocorrido a condenação de dois empresários, um músico e um assistente de palco, houve anulação do júri por dois desembargadores devido a erros processuais e, até agora, não existe estimativa de quando será feito um novo julgamento ou outra decisão.
A série tem no elenco nomes como Debora Lahm, Thelmo Fernandes e Paulo Gorgulho. Na obra, é apresentado um pouco do que ocorreu antes da tragédia. Em destaque, a alegria de jovens que celebravam a vida com seus amigos e também se despediam de seus familiares antes da ida à Kiss.
A escolha de realizar uma produção ficcional em vez de recorrer ao formato documental está ligada à possibilidade de despertar mais “empatia” dos espectadores com o que será retratado.
“Acho que a ficção nos permite colocar o espectador no centro dos acontecimentos. Ela promove muita empatia com os personagens e com o drama que eles estão vivendo, além de nos permitir vivenciar situações que possivelmente não têm registros. Acho que entramos na intimidade desses personagens e dessas famílias”, explica Júlia Rezende.
Diante de tamanha tragédia, era necessário conduzir a minissérie com delicadeza. Segundo a diretora, um dos maiores desafios enfrentados foi o de “encontrar o tom e a medida do que mostrar e do que não mostrar”. A alternativa definida pela equipe de produção foi investir no som para a ambientação.
“O som, nesse projeto, tem um lugar especial no qual muitas vezes a gente vai entender o que está acontecendo por ele. Quando a gente entra naquele ginásio e escuta dezenas de telefones celulares é tão impactante - ou até mais - do que ver os corpos, porque isso nos conecta com as famílias que estão em busca dos seus filhos”, aponta.
A cineasta acrescenta: “A gente ficou sempre muito preocupado com essa medida de não afastar o espectador e de não ofender nenhum familiar ou sobrevivente. Que as pessoas pudessem assistir a essa história se conectando com o que aconteceu, mas sem explorar o sofrimento”.
Houve também desafios técnicos, como o de filmar o incêndio de forma cinematográfica e, ao mesmo tempo, encontrar o tom na atuação e na fotografia para “narrar a história da forma mais adequada possível". Na parte “profissional”, era necessário cuidado com a própria equipe, para que lidasse com as gravações se sentindo acolhida e amparada. Foram convidadas duas psicólogas de um instituto especializado em luto.
A equipe de produção não teve contato direto com os familiares das vítimas ao longo das gravações. A ponte, nesse caso, era feita a partir de Daniela Arbex, jornalista e autora do livro “Todo Dia A Mesma Noite” e que tem relação de confiança e parceria com as famílias.
Na série, Arbex trabalhou como consultora criativa, função na qual dava “suporte” para a criação de conteúdo, de modo que a história fosse contada com “todo o respeito e delicadeza possíveis”. “Foi um trabalho desenvolvido com muito zelo e dignidade”, afirma a jornalista.
“Participar dessa produção significa muito para mim, porque o jornalismo que eu faço é um jornalismo de construção da memória coletiva do Brasil”, revela. A autora lembra do grande alcance que a série pode ter em outros países e, assim, fazer a história da tragédia “tocar milhões de pessoas”.
“Vejo essa minissérie de ficção como oportunidade para que a gente possa refletir profundamente sobre a necessidade de responsabilização. A gente não pode continuar sendo guiado pela impunidade. Eu falo que memória e justiça caminham juntas. Sem memória não há justiça. Essa obra é um caminho potente para a busca da justiça”, defende.
Júlia Rezende corrobora com o pensamento de Daniela Arbex: “A mensagem que a gente pode deixar com esse projeto é promover a reflexão sobre a justiça brasileira, sobre impunidade e responsabilização. Como é possível que, dez anos depois de uma tragédia que tirou a vida de 242 jovens e deixou tantos sobreviventes com marcas físicas e psicológicas, além de famílias devastadas, ninguém ter sido culpado ou responsabilizado até agora? Como é possível que essas famílias sigam em uma luta por justiça incansável e sofrendo ainda a falta de respostas?”.
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Na Globoplay
A plataforma de streaming Globoplay também lança conteúdo relacionado ao incêndio na Boate Kiss. A série documental "Boate Kiss - A Tragédia de Santa Maria" estreia nesta quinta-feira, 26, também com cinco episódios. Entretanto, essa é conduzida e dirigida pelo repórter Marcelo Canellas, da TV Globo.
A obra refaz, passo a passo, a sucessão de acontecimentos que provocaram a tragédia, trazendo imagens inéditas. A produção também aborda o processo judicial e a dor das famílias e dos sobreviventes da noite de janeiro de 2013.
Todo Dia A Mesma Noite
Quando: a partir desta quarta-feira, 25
Onde: Netflix
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