Dos 90 anos de vida do ator, poeta, dramaturgo, encenador, historiador, gestor e professor cearense B. de Paiva (1932-2023) — alcunha pela qual José Maria Bezerra de Paiva se tornou nacionalmente reconhecido —, 78 deles foram dedicados ao teatro. Isso porque a atuação do artista teve gênese quando ele, aos 12 anos, não somente brincava de atuar e criar, mas construiu uma estrutura para se apresentar no quintal de casa. Essa foi uma das bases iniciais que possibilitou o desenrolar de uma rica trajetória do artista, dos espetáculos premiados à concretização de instituições relevantes no Estado. O artista, que tinha Alzheimer há cerca de uma década, faleceu na última terça, 31, deixando esses e outros legados que perduram até hoje.
Das brincadeiras de teatro — memória compartilhada pelo professor Carlos Bittencourt, um dos filhos do artista, em entrevista ao Vida&Arte —, o menino José enveredou na linguagem a partir de formações ainda nos anos 1940 e 1950 em espaços como o grupo Teatro-Escola do Ceará, criado por Nadir Saboya e Maristher Gentil. Outros nomes da cultura cearense que despontam na trajetória de B. de Paiva são Paschoal Carlos Magno — com quem trabalhou no Teatro Duse, no Rio de Janeiro —, Haroldo Serra e Afonso Barroso — com quem nutriu amizade e parceria profissional no grupo Comédia Cearense.
Nos anos 1960, o cearense teve participação ativa na instauração da Secretaria da Cultura do Estado, do Curso de Arte Dramática e do Teatro Universitário da Universidade Federal do Ceará, entre outras iniciativas ligadas à gestão e formação. Na mesma década, foi gestor do Theatro José de Alencar por sete anos.
"Esse cara fica. Esse é um cara que a gente não tem nem como dimensionar. A gente está enterrando um pai maravilhoso, uma pessoa absolutamente generosa. Vivi com ele muitas coisas — como criança, filho, mas também um espectador da história", compartilha Carlos.
Entre família e amigos, B. de Paiva era Zé Maria, como divide Elizabeth Pougy, também filha do artista. "Como pai, ele era uma figura mágica. A gente estava enfiado no teatro, desde um mês de vida eu já fazia papel de Cristo. Era uma figura muito carismática, muito carinhosa", rememora.
Carlos e Elizabeth lembram, ainda, de ações do pai em meio à ditadura militar. "Pude ver dentro de casa o tanto que ele ajudou pessoas na época. Embora eu não compreendesse claramente, pude compreender a dimensão do gesto dele acolhendo pessoas que iam para a clandestinidade. Não que ele fosse comunista, mas um humanista", afirma o filho.
Com passagens também por Rio de Janeiro e Brasília, B. de Paiva ainda atuou em espaços como o Conservatório Nacional de Teatro (RJ) e a Fundação Brasileira de Teatro (DF), além de ter trabalhado junto à Fundação Nacional de Artes e universidades nos estados.
Diretor da Cia. Teatral Acontece, Almeida Junior ressalta o cearense como "uma referência importantíssima para o teatro cearense e nacional". "É uma grande perda, mas tenho certeza que ele cumpriu a missão aqui na Terra, deixou um grande legado para os artistas que vieram depois. A importância dele não se compara. Sou feliz por ter sido parte da contemporaneidade do B. Paiva, por ter o conhecido de perto", ressalta Almeida.
A carreira teatral — seja em gestão, criação ou formação — se sobrepõe, mas B. de Paiva era "uma pessoa da cultura e das artes", como define o cineasta Rosemberg Cariry, que chegou a dirigir o ator em filmes como "Corisco & Dadá" (1996). "Era a retomada do cinema, com muita dificuldade, e ele estava sempre à disposição quando a gente chamava, incentivava também, lutava para que esse cinema pudesse surgir", lembra.
Rosemberg rememora, ainda, visitas que fazia ao artista na época em que morava em Brasília. "Ele era um grande contador de histórias, um narrador da crônica artísticas e cultura brasileira", aponta, citando ainda uma biblioteca e um acervo sobre teatro e artes que B. de Paiva mantinha na região.
"Ele tinha um arquivo incrível, uma coleção. Foi um homem que lutou pela questão da cultura, da memória e, mais especificamente, das artes cênicas no Brasil", dialoga Elizabeth. "A questão do Alzheimer veio nesses últimos 10, 15 anos de vida, e foi muito triste, ele era uma pessoa que trabalhava com a questão da memória", divide a filha.
Em fluxo de lembranças pessoais, Elizabeth compartilha, ainda, o gosto do pai por quadrinhos e filmes de faroeste e ação — "ele não gostava de 'filme cabeça'" —, além das "peças" que pregava. "Ele criou um personagem que seria um autor teatral polonês e, nos discursos que fazia, citava o autor, 'teorias' dele. Era uma peça, mas as pessoas ficavam boquiabertas", ri-se. "São pontos que não são do ator, diretor e homem de cultura, mas do pai, do avô, do Zé Maria, essa figura por quem todo mundo se apaixonava", finaliza.
B
O pesquisador e professor de teatro Ricardo Guilherme — que conviveu em níveis pessoais e profissionais com B. de Paiva — compartilha poesia escrita em homenagem à memória do amigo e artista. O escrito, que leva como título "B", segue abaixo na íntegra:
B. de Paiva, B de pai,
pai irmanado, irmão patriarcal,
menino antigo, homem grávido.
Inflável, inflamável,
fala como se fossem as suas falas
as últimas palavras de um orador
que vai perder a voz,
agoniado e agonizante.
B José, B Maria,
geógrafo das sesmarias do sonho,
agrimensor das fronteiras.
B tem na cabeça o cabeça.
B com o Outro tão consoante.
B, um Dom Quixote fragílimo
arquitetando Pasárgadas.
Do B imprima-se a invenção
e revoguem-se as disposições em contrário.
B. de Paiva por Ricardo Guilherme
José Maria B. de Paiva (Fortaleza/CE,1932), ator, poeta, dramaturgo, encenador, historiador, gestor e professor, começa sua trajetória em Teatro como ponto do Conjunto Sacro-Dramático, de Rufino Gomes de Matos (1947) e no Teatro-Escola do Ceará, grupo criado em 1951 por Nadir Saboya e Maristher Gentil. Funda com Haroldo Serra, Hugo Bianchi e Marcus Miranda o Teatro Experimental de Arte (1952).
No reitorado de Martins Filho assume a liderança do processo de instauração do Moderno Teatro do Ceará ao criar o Curso de Arte Dramática (1960) e o Teatro Universitário da Universidade Federal do Ceará (1965), núcleos determinantes para a formação de toda uma geração de atores, atrizes, cenógrafos, dramaturgos, figurinistas, aderecistas, arte-educadores e demais técnicos vinculados às artes cênicas. Em 1966 participa da criação da Secretaria de Cultura do Ceará (a primeira do país). De 1960 a 1967 protagoniza gestões do Teatro José de Alencar e consolida a produção dos grupos Comédia Cearense e Teatro Universitário, de 1960 a 1967.
No Rio de Janeiro/RJ produz inúmeros programas de dramaturgia na Rádio MEC (de 1954 a 1959), dirige o Teatro Duse (1954- 1956), o Conservatório Nacional de Teatro (1968-1969) e se faz professor titular e reitor da Federação das Escolas Isoladas do Rio de Janeiro (FEFIERJ, depois UNI-Rio/1974-1977). Edita não somente livros seus (Cartilha de Teatro com Hermilo Borba Filho/1969) mas também de outros escritores. Durante a década 1970 participa de movimentos que regulamentam no Brasil as profissões teatrais e o ensino universitário das artes. Sob sua liderança trabalham nomes de projeção nacional como Glauce Rocha, Rubens de Falco, Suzana Faini, Françoise Fourton, Amir Haddad, Bárbara Heliodora, Perfeito Fortuna, Roberto de Cleto e Paulo Coelho, dentre tantos outros.
A partir dos anos 1980, radicado no Distrito Federal, preside a Fundação Brasileira de Teatro/Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, leciona na Universidade de Brasília (UnB), coordena a Funarte, a Fundação Pró-Memória e, no início do século XXI, é nomeado Secretário-Adjunto da Cultura do Distrito Federal.
Com o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Ceará volta ao Ceará (1998), gerencia as atividades artísticas da Pró-Reitoria de Extensão da UFC, administra o Colégio de Direção Teatral do Instituto Dragão do Mar (1999) e atua como Presidente da Fundação Amigos do Teatro José de Alencar (2000-2001).
De sua teatrografia constam bem mais de duas centenas de encenações realizadas em Fortaleza, Rio e Brasília, dentre as quais destacam-se "Lampião", de Raquel de Queirós (1954), "O Preço da Paz", de Adolphina Bonapace (1955), "Frankel", de Antônio Callado (1956), "Zé do Pato", de Elza Pinho Osborne (1957), "Auto da Compadecida", de Ariano Suassuna (1960), "Macbeth", de Shakespeare (1961), "O Pagador de Promessas", de Dias Gomes (1962), "O Beijo no Asfalto", de Nelson Rodrigues (1963), "Eles Não Usam Black-tie", de Gianfrancesco Guarnieri (1963), "Cancioneiro de Lampião", de Nertan Macedo (1963), "Antígona", de Sófocles (1963), "O Morro do Ouro", de Eduardo Campos (1963), "Rosário, Rifle e Punhal", de Nertan Macedo (1963), "Rosa do Lagamar", de Eduardo Campos (1964), "A Valsa Proibida", de Silvano Serra e Paurilo Barroso (1965), "O Casamento da Peraldiana", de Carlos Câmara (1966), "Bodas de Sangue", de Garcia Lorca (1967), "Liberdade, Liberdade", de Millôr Fernandes e Flávio Rangel (1967), "Um Uísque Para o Rei Saul", de César Vieira (1968), "O Exercício", de Lewis John Carlino (1969), "O Belo Indiferente", de Jean Cocteau (1969), "Rashomon", de Akugatawa (1978), "Cantochão Para Uma Esperança Demorada", de B. De Paiva (1980), "O Conselheiro e Canudos", de Ricardo Guilherme (1987), "Frei Tito: Vida, Paixão e Morte", de Ricardo Guilherme (1992). Seu currículo contém ainda atuações em filmes de Pedro Jorge de Castro, Wladimir Carvalho, Rosemberg Cariry, Glauber Filho, Sérgio Resende, Geraldo Moraes, Carlos Alberto Prattes, Ipojuca Pontes, Carlos del Pino, Liloe Boublie e Volney Oliveira. Na Rede Globo de Televisão integra o elenco de teledramaturgias como "Os Irmãos Coragem", "Plantão de Polícia", "Lampião e Maria Bonita" e "Carga Pesada".
A trajetória do B. começa nos anos 1940, como ponto, soprando as falas dos atores no Conjunto Sacro-Dramático do velho Rufino Gomes de Matos. Era, então, àquela época, apenas o Zé Maria da dona Mazé do Seu Paivinha. A denominação B . de Paiva surgiria na década 1950, sob a inspiração de Cecil B. de Mille. Antes, José Maria Bezerra Paiva era aquele Zé franzino, da perna torta, uma espécie de Mané Garrincha do teatro, mambembando pelos círculos operários, como um aprendiz de Dionisos, gerado na escuridão dos porões da ribalta e parido pelo ventre iluminado à meia luz do buraco do ponto.
Esse ser surgido das entranhas do tablado (dramaturgo, ator, diretor teatral) esteve de 1954 a 1959 exilado de Fortaleza, trabalhando com Paschoal Carlos Magno no Rio de Janeiro, e em 1960 voltou à sua pátria-cidade para criar o Curso de Arte Dramática da UFC e assim, dirigindo o Teatro Universitário e a Comédia Cearense, liderar o movimento das artes cênicas do Ceará até 1967. Alguns poucos anos depois, fez-se Reitor da FEFIERJ, berço da UNI-Rio. No início dos anos 1980 e por toda a década seguinte o nosso B. passou a viver em Brasília, onde reencontrou Dulcina de Moraes para sedimentar o ensino universitário das artes cênicas, implantado pela Fundação Brasileira de Teatro.
Embora radicado em Brasília, B. de Paiva protagonizou, posteriormente, ações culturais da Universidade Federal do Ceará e também dirigiu, por certo tempo, o Colégio de Direção do Instituto Dragão do Mar de Arte e Cultura.
Por seus 90 novembros, desde 1932, eis em palavras uma lembrança. Ave, Zé! Foi tão ávida a vida!
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