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Pioneirismo, profissionalismo e luta: Glória Maria
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Pioneirismo, profissionalismo e luta: Glória Maria

| MEMÓRIA |Glória Maria morreu, vítima de um câncer. Deixa um legado de devoção ao ofício de jornalista e de profundo entusiasmo pela vida
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Gloria Maria morreu nesta quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023 (Foto: Reprodução/Redes Sociais)
Foto: Reprodução/Redes Sociais Gloria Maria morreu nesta quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Luta antirracismo, entrevistas com as maiores celebridades da história, viagens a locais inexplorados e reportagens que renderam prêmios. A trajetória de Glória Maria gerou apreciação, risadas, inspiração e representatividade. A notícia da morte deixou tristeza. Nesta quinta-feira, 2 de fevereiro, a jornalista da TV Globo morreu devido a um câncer de pulmão com metástase cerebral.

"É com muita tristeza que anunciamos a morte de nossa colega, a jornalista Glória Maria. Em 2019, Glória foi diagnosticada com um câncer de pulmão, tratado com sucesso com imunoterapia. Sofreu metástase no cérebro, tratada em cirurgia, também com êxito inicialmente", afirmou a TV Globo.

"Em meados do ano passado, Glória Maria começou uma nova fase do tratamento para combater novas metástases cerebrais que, infelizmente, deixou de fazer efeito nos últimos dias, e Glória morreu esta manhã, no Hospital Copa Star, na Zona Sul do Rio.", finaliza a nota da emissora.

Glória Maria Matta da Silva nasceu no Rio de Janeiro e é filha do Cosme Braga da Silva e Edna Alves Matta. A carioca foi estudante do ensino público e sempre destacou sua aprendizagem. "Aprendi inglês, francês, latim e vencia todos os concursos de redação da escola", disse em entrevista à TV Globo.

Ela estudou Jornalismo na PUC-Rio ao mesmo tempo em que trabalhava como telefonista da Embratel. Sua estreia na TV Globo foi como radialista, em uma época que os repórteres não costumavam aparecer em vídeo.

Glória passou por programas como Jornal Hoje, no RJTV, Bom Dia Rio e Jornal Nacional. Nesse último, ela foi a primeira repórter a aparecer ao vivo. A jornalista apresentou ainda o Fantástico e o Globo Repórter.

Ela foi pioneira inúmeras vezes em sua carreira. Glória mostrou mais de 100 países em suas reportagens, sendo uma figura marcante em diversos momentos históricos da política nacional e internacional.

A jornalista carioca cobriu, por exemplo, a posse de Jimmy Carter em Washington (EUA) e entrevistou, durante o período militar no Brasil chefes de estado, como o ex-presidente João Baptista Figueiredo. No meio artístico, entrevistou Michael Jackson, Madonna e Freddie Mercury.

A jornalista era mãe de Maria, 15 anos, e Laura, de 14. Ambas foram adotadas em 2009 na Bahia.

"A minha felicidade é olhar para as duas, é brincar, o abraço, o beijo, é a necessidade de elas ficarem comigo", declarou certa vez.

Em março de 2022, ela participou do Roda Viva, da TV Cultura, onde comentou sobre o estado de saúde: "Se eu não tivesse descoberto naquele momento, o tumor me mataria em 15 dias. Mas não tive medo. Você está vivo para passar por todo tipo de experiência. É que o ser humano tem a tendência de querer viver num mundo cor-de-rosa". (Colaborou Raquel Aquino)

Luta antirracismo

O legado de Glória Maria, com mais de cinco décadas de carreira, vai além das reportagens marcantes: a jornalista foi a primeira repórter negra da televisão brasileira e também a primeira pessoa a usar a lei contra o racismo.

A trajetória de sucesso na Rede Globo, em programas como "Fantástico" e "Globo Repórter", lhe rendeu reconhecimento nacional. Conforme relatou em entrevistas, chegou a receber cartas de telespectadores com ataques racistas, quando ainda apresentava o "Fantástico". A jornalista já havia defendido que "nada blinda uma mulher preta do racismo, nem mesmo a fama".

Em 2019, contou um dos episódios que a levaram a acionar, de forma inédita, a lei Afonso Arinos. "Racismo é uma coisa que eu conheço, que eu vivi, desde sempre. E a gente vai aprendendo a se defender da maneira que pode. Eu tenho orgulho de ter sido a primeira pessoa no Brasil a usar a Lei Afonso Arinos, que punia o racismo, não como crime, mas como contravenção. Eu fui barrada em um hotel por um gerente que disse que negro não podia entrar, chamei a polícia e levei esse gerente do hotel aos tribunais. Ele foi expulso do Brasil, mas se livrou da acusação pagando uma multa ridícula. Porque o racismo, para muita gente, não vale nada, né? Só para quem sofre", desabafou em post publicado no ano de 2019.

Uma das ocasiões que se destacaram em sua trajetória profissional foi quando entrou "em embate" com João Figueiredo, último presidente brasileiro da ditadura militar, e foi vítima de racismo por parte do general.

"Eu tenho uma história horrível com os militares. O general Figueiredo não me suportava porque, quando ele foi indicado, a gente foi fazer (cobrir) aquela famosa fala dele na Vila Militar em que ele dizia: 'Para defender a democracia, eu bato, prendo e arrebento'. Eu era muito boa em português, eu não lembro direito, mas ele citou uma coisa da gramática que não existia mais", disse a jornalista no programa "Conversa com Bial", em 2020.

Ela prosseguiu: "Aí eu falei: senhor presidente, o senhor me desculpa, mas o senhor precisa aprender um pouco mais da gramática portuguesa porque isso que você falou não existe na gramática". Em seguida, Figueiredo disse para "tirar Glória Maria dali". A partir disso, ela passou "a ter horror" do general.

A apresentadora ainda afirmou que, ao vê-la na cobertura de eventos em que estava participando, o então presidente dizia para a equipe de segurança: "Tira aquela neguinha da Globo daqui". Glória Maria revelou que passou a ouvir essa frase durante todo o governo de Figueiredo. "Racismo, para mim, já veio de tudo quanto é nível", acrescentou Glória no programa. (Colaboraram Giselly Correa Barata e Miguel Araújo)

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