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Netflix: novo anime derrapa na superficialidade ao visitar obra de Junji Ito
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Netflix: novo anime derrapa na superficialidade ao visitar obra de Junji Ito

Série da Netflix adapta contos da prestigiada publicação "Junji Ito - Histórias Macabras do Japão"
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Foto: Divulgação "Histórias Macabras do Japão" se destaca pelo terror

Conhecido pela originalidade e surrealismo que transbordam das páginas em suas narrativas, o autor de histórias de terror Junji Ito ganha uma adaptação de alguns de seus mais famosos contos na plataforma de streaming Netflix. Vencedor do Eisner Award (2019), considerado o Oscar entre as publicações do gênero, o criador também trabalhou em parceria com grandes nomes, como Guillermo Del Toro (“A Forma da Água”) e Hideo Kojima (“Silent Hill”), mestre dos jogos de terror.

“Junji Ito: Histórias Macabras do Japão” apresenta bem os conceitos por trás da mente do mangaká (como são chamados os quadrinistas no meio de mangás/animes). Um contraponto, porém, é o fato de a animação contrariar os fãs mais puristas da obra do autor ao trazer cores, já que um dos elementos mais marcantes de Junji Ito é o desenho em preto e branco com alto nível de contraste.

Apesar de não trabalhar diretamente na série, Junji Ito fez a seleção de 20 de suas histórias, que são adaptadas ao longo de 12 episódios. A animação assinada pelo Studio DEEN e com roteiros de Kaoru Sawada, "Histórias Macabras do Japão", apesar de fiel a obra do autor em seus roteiros, acaba sofrendo com uma grande falta de imersão na maioria de seus episódios.

Muitos dos episódios acabam não mantendo a essência tenebrosa dos contos, não por se distanciar de suas ideias originais, mas, sim, pelo pouquíssimo tempo de tela das tramas – já que alguns dos episódios, que têm cerca de 24 minutos, contam dois contos. E o problema não está no roteiro em si, já que Junji Ito é muito famoso por vários de seus pequenos contos, que curtos ou não, nos prendem a cada quadro que lemos em seus mangás. O que definitivamente acaba por não acontecer na adaptação televisiva.

O telespectador é apresentado a uma premissa interessante e, no mínimo, desconfortável, mas não passa disso, já que a história, muitas vezes, não consegue se desenvolver em tão pouco tempo. Não temos tempo de nos apegar aos personagens ou até mesmo sentir medo de momentos claramente bizarros. A trilha sonora, na maior parte do tempo, também não ajuda. O som destoa completamente do tom do que está acontecendo no momento.

Felizmente isso não acontece em todos os episódios. Alguns capítulos duplos como "Intruso/Cabelo longo no Sótão", mesmo com pouco tempo de tela para cada história, consegue nos prender e até acaba por nos fazer refletir. No caso de "Cabelo longo no Sótão", podemos ver que relações abusivas podem nos transformar e nos marcar negativamente, até com os mais "simples" gestos.

Outro exemplo de episódio duplo que funciona é "A história do túnel misterioso/Caminhão de Sorvete", mas nesse caso, apenas um deles funciona, o que acaba gerando outro grande problema na série, a falta de equilíbrio entre histórias que funcionam na tela e as que não funcionam.

A narrativa do túnel misterioso é o caso das que não funcionam, e acabam se tornando confusas, não nos trazendo o medo que toda a situação abordada nela deveria trazer.

Já "O Caminhão de Sorvete" faz o contrário do conto anterior e mostra em poucos minutos uma das principais características do autor de forma magistral, que é imaginar como coisas simples podem se tornar extremamente grotescas e surreais. Definitivamente um dos destaques da série, apesar de sofrer com outro grande problema do lançamento, que é a utilização precária de alguns efeitos 3D.

Que a utilização de 3D tem se tornado cada vez mais comum nos estúdios de animação, isso não é novidade e muito menos um problema. A questão em "Histórias Macabras do Japão" é como ele é utilizado, o que muitas vezes beira o ridículo, principalmente em contraste com a ótima arte de toda a animação, que tem um grande orçamento. O que torna ainda mais vexatória essa utilização tão preguiçosa.

No entanto, nem todos os episódios sofrem com o 3D, e um deles é o que adapta o famoso conto de Junji Ito, "Balões no ar", que conta a história de uma moça com certa fama onde mora, que foi encontrada enforcada de forma misteriosa. Aqui Junji Ito mais uma vez nos faz navegar entre o bizarro e o hilário, tornando o simples assustador de uma forma muito engenhosa. Em uma das narrativas mais bizarras da temporada, o episódio que foca neste único conto nos faz sentir arrepios ao ver um céu cheio de "simples" balões.

Destaque também para o Episódio "Foto de Tomie", que traz uma das personagens mais famosas do autor. Em mais um capítulo que conta uma única história, vemos mais um dos principais traços do autor, que é o horror corporal. Em um episódio que navega entre uma simples intriga escolar adolescente e a pura carnificina, definitivamente fazendo jus à fama dessa grande personagem.

No fim, apesar de sofrer com a falta de imersão em muitos dos episódios, "Histórias Macabras do Japão" acaba por ser uma ótima porta de entrada para novos fãs de Junji, ou até mesmo para alguns fãs mais antigos do autor. A série consegue passar toda a criatividade mórbida e a clara menção ao surrealismo exposta pelo autor. Além de questões sociais como abuso, bullying e feminicídio.

"Histórias Macabras do Japão" conta com cenas extremamente fiéis as páginas de mangá que as inspiraram. Apesar da ausência de esmero na utilização do 3D em alguns momentos e da falta de equilíbrio entre algumas histórias, a série definitivamente merece a atenção do público. Mesmo que não acostumados com obras que trazem cenas tão grotescas, reflexões e questionamentos tão perturbadores como aqui. Aguardemos então uma possível renovação, para que possamos ver ainda mais histórias desse grande mestre do terror oriental.

Netflix

Série em 12 episódios já disponível no serviço de streaming

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