Torcedora do Palmeiras como é, Luiza Romão usa uma metáfora compartilhada pelo técnico Abel Ferreira para explicar o seu sentimento depois de uma conquista importante: "Ele fala para os jogadores que eles têm 24 horas depois de qualquer grande jogo, seja para comemorar muito uma vitória, um título, ou para se lamentar de alguma derrota. Depois dessas 24 horas, independentemente do resultado, a equipe volta ao campo para treinar e o campeonato segue, vem outro jogo. Acho que eu sou um pouco assim também".
No caso da poeta, atriz e slammer paulista, sua grande vitória aconteceu em novembro de 2022, quando conquistou a categoria de Melhor Poesia e Livro do Ano na maior premiação literária nacional: o Prêmio Jabuti. A obra aclamada foi "Também Guardamos Pedras Aqui", publicado pela editora Nós e resultado de anos de reflexões sobre o poema épico "Ilíada", do grego Homero.
Na "Ilíada", Homero trata sobre a Guerra de Troia, conflito entre gregos e troianos que ocorreu provavelmente no século XIII a.C. Em seu livro, Luiza Romão faz uma releitura do poema para falar sobre "como a literatura ocidental foi erguida sobre a violência, em especial, contra a mulher".
A ideia para construir "Também Guardamos Pedras Aqui" começou por volta do início de 2017, quando a escritora leu o poema pela primeira vez. O contato com a obra causou choque e provocou reflexões na autora: "Eu lembro de ter ficado muito incomodada, porque é um livro bastante violento. Você vê o relato de um massacre e existe um acúmulo de verbos, de ações e de histórias de morte"
Ela acrescenta: "Eu lembro da sensação de pensar: 'Gente, (o diretor norte-americano) Quentin Tarantino é 'fichinha' perto disso aqui'. É uma narrativa muito sanguinolenta, e eu fiquei intrigada em pensar como o Ocidente vai fundamentar, a partir dessa narrativa, uma ideia de poética, de estética, de política e de democracia que chega nas Américas via colonização de uma forma muito brutal e continua emulando alguns sentidos de arte, de política e de conhecimento", relata.
Diante disso, surgiu o primeiro - e único, naquele momento - poema que entraria em seu livro. Em "Homero", que passou por diversas transformações até chegar à versão final, Romão inicia sua fala com os versos "Os gregos foram capazes de / milhares de troianos", em que os outros versos que conectariam as duas partes são "tapados" por uma faixa preta, remetendo a censura.
Em seguida, é anunciado: "porém / no último canto de ilíada/ aquiles devolve a príamo / o corpo de seu filho heitor / hoje nesse momento aqui / no sul do sul do mundo / ainda não se tem notícia / dos mais de duzentos desaparecidos / na ditadura militar / um corpo é um atestado de barbárie / até os gregos tinham piedade".
O poema foi o início de outros textos que seriam criados por Romão. Em 2019, participou de uma oficina de escrita do autor Marcelino Freire e começou a desenvolver os poemas seguintes de sua obra, sendo um para cada personagem da "Ilíada". O incômodo foi traduzido em textos que apontam sobre masculinidade, violência e brutalidade.
Em uma marcha de denúncia contra o neocolonialismo a partir de contextualizações com o relatado na Guerra de Tróia, é possível expandir as significações de "Também Guardamos Pedras Aqui" para violências contra povos originários brasileiros. O cenário ganha ainda mais importância a partir da criação do Ministério dos Povos Originários.
"A gente precisa olhar para essa ruína colonial desse projeto de Brasil. O Brasil, enquanto nação, é fundado a partir de uma violência, que vem dessa experiência brutal de colonização. Nesse sentido, acho que dá pra a gente relacionar com a 'Ilíada' e com a leitura que tento fazer disso. O que a gente aprende hoje no Brasil é muito perpassado por essa imposição eurocêntrica, de uma tradição literária e filosófica. Espero que a gente comece a ter políticas públicas de reparação histórica para reler esses monumentos e essa história colonial", enfatiza.
Autora também dos livros "Sangria" (2017) e "Coquetel motolove" (2014), Luiza Romão tem trajetória também marcada pela participação na cena de saraus e slams de São Paulo (SP). Os slams são movimentos nos quais acontecem duelos de poesias faladas e, no Brasil, são conhecidos por ocorrerem em espaços abertos. Em cena, apenas o poeta, um microfone e uma comissão julgadora.
Em 2014, Luiza foi vice-campeã do Slam BR e sua dissertação de mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada, intitulada "Microfone em chamas: slam, voz e representação", pesquisa exatamente esse movimento. Assim, é possível apontar como o slam é significativo para Luiza Romão.
"A importância do slam na minha trajetória e na minha poética é inegável. Além de eu ter virado poeta porque comecei a frequentar os slams e os saraus. Isso não estaria no meu horizonte. Acho que tem essa importância de ter suscitado o interesse muito grande por pensar poesia a partir da performance. Eu sou uma artista da cena, então a minha poesia é a partir dessa implicação", compartilha.
"Acho que vai demorar ainda muito tempo para a ficha cair", diz Romão, que alega não ter esperado a conquista do Jabuti. Três meses depois, porém, o sentimento é de que "a vida continua", e retornou a dar aulas, a se debruçar em trabalhos acadêmicos e a escrever. Assim, logo é possível fazer relação com o mantra de Abel Ferreira. (Miguel Araujo)
Também Guardamos Pedras Aqui
de Luiza Romão
Editora Nós
64 páginas
Quanto: R$ 54 (livro físico)
Onde comprar: site editoranos.com.br/produto/tambem-guardamos-pedras-aqui/