Professora de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo e pesquisadora do CNPq, Eliane Robert Moraes acaba de lançar a coletânea "O corpo desvelado - Contos eróticos brasileiros 1922-2022" (Cepe, 2022). Na obra, escritos que tratam do desejo nos últimos 100 anos no Brasil são elencados. O livro vem a público como continuação de "O corpo descoberto - Contos eróticos brasileiros 1852-1922" (CEPE, 2018). Ao Vida&Arte, Moraes fala sobre o imaginário erótico nas artes e na literatura, seu foco de pesquisa que conta também com obras como "Antologia da poesia erótica brasileira" (Ateliê, 2015), publicada em Portugal (Tinta da China, 2017), além da "Seleta erótica de Mário de Andrade" (Ubu, 2022) e muitos outros títulos.
O POVO - Você costuma dizer que "A sexualidade exuberante é uma marca da identidade nacional". Como isso se relaciona com tamanha repressão (in)consciente do País a esse respeito nas diversas instâncias sociais e até artísticas?
Eliane Robert Moraes - Como a literatura nunca é um mero espelho da realidade, a forma como se vivencia a sexualidade nunca produz um reflexo direto nas representações artísticas. Ou seja, em se tratando da sexualidade, a relação entre liberdade e repressão é sempre tensa e o caso brasileiro não é uma exceção...Dito isso, vale lembrar que o erotismo literário, como toda arte, caminha em paralelo às transformações históricas. Até bem pouco tempo, os livros eróticos foram objeto de reiteradas proibições nas sociedades ocidentais, sendo não raro produzidos e difundidos na clandestinidade. Essa característica não foi diferente no Brasil, cuja história traz fortes marcas do jugo patriarcal que, aliados a outras formas de repressão, também precipitaram mecanismos eficazes de censura às manifestações licenciosas. Todavia, embora esses tempos sombrios desafiassem as forças vitais de Eros, é notável a quantidade e a qualidade dos textos eróticos produzidos no país, não é? Creio que vivemos algo semelhante nos últimos quatro anos, igualmente sombrios no Brasil. Se, de um lado, as forças conservadoras insistiam em reiterar o "perigo" do erotismo, de outro, tivemos criadores notáveis nas artes e na literatura produzindo obras de alta voltagem erótica. "O Corpo desvelado" com certeza é um excelente testemunho disso na literatura. Para ficar num só exemplo fora do literário, cito também o cinema brasileiro, por exemplo, com filmes geniais como os recentes "Corpo Elétrico", de Marcelo Caetano, ou "Bixa travesti", de Kiko Goifman, entre muitos outros.
OP - Quais os aprendizados desta nova coletânea de 600 páginas? Que seções foram mais surpreendentes?
Eliane - Puxa, é difícil dizer, pois já não foi nada fácil selecionar os contos que figuram no volume. A pesquisa reuniu uma grande quantidade de escritos criados entre 1922 e 2022, muito diversificada, e terminamos por escolher apenas (apenas?!) 70 deles... Uma questão que me chamou a atenção foi a presença da figura feminina como escritora erótica. Ela aparece sobretudo a partir dos anos 1970 e com uma característica curiosa: isso porque, a parte mais solar e mesmo alegre de "O corpo desvelado", nomeada "Das visitas ao paraíso", é precisamente aquela que é mais feminina. Dos dez contos que ela comporta, sete foram escritos por mulheres — Myriam Campello, Ana Miranda, Andréa Del Fuego, Cíntia Moscovich, Ana Paula Maia, Beatriz Bracher e Hilda Hilst. Ora, o que prevalece nos contos dessas autoras é uma expressão de plenitude, pouco presente no estante do volume... Dá o que pensar, não? Mas "O corpo desvelado" tem muito, muito mais que isso. A pergunta me obriga remeter o leitor e a leitora ao livro.
OP - Na nova antologia, há narrativas desde o começo do século até contos inéditos de autores contemporâneos. O que sexualidades cada vez mais libertas e em trânsito, como as de mulheres e pessoas LGBTQIAS , trazem para nossa literatura?
Eliane - No capítulo da sexualidade, não foram poucas as mudanças que o Brasil testemunhou nas últimas décadas. Mulheres, gays, lésbicas, transexuais e simpatizantes de todos os sexos saíram dos respectivos armários para denunciar preconceitos, feminicídios, homofobias e abusos de toda ordem, em lutas que reverberaram nas ruas e nas telas, nas escolas e nas TVs. Delas resultaram as delegacias da mulher, os manuais de educação sexual, os desfiles das paradas gays e muitas outras iniciativas coletivas. Se ainda temos muito — e muito mesmo— a fazer nesse sentido, uma coisa é certa: nossos corpos estão mais livres e não há retrocesso possível. Ou seja: essas conquistas se mostraram capazes de perturbar o status quo patriarcal ao qual o País estava condenado, oferecendo novas potencialidades sensíveis às nossas vidas. O que isso traz para a literatura é muito mas pode ser resumido em uma só palavra: liberdade!
OP - Como a busca por autores de diversos lugares do Brasil acrescenta à obra? Está a par da literatura erótica que está sendo bastante produzida no Ceará em diversos gêneros?
Eliane - Veja, temos dois autores cearenses excepcionais no livro: Ana Miranda e Ronaldo Correia de Brito. A contribuição deles é muito preciosa, e só não vou me alongar para não dar spoiler... Mas gostaria de pesquisar mais e mais sobre o que vocês estão fazendo em matéria de erotismo e deixo aqui um convite ao diálogo para os autores e autoras da erótica literária do Ceará, estado que tenho no coração: vamos conversar?
O Corpo Desvelado
De Eliane Robert Moraes
Editora CEPE
Quanto: R$ 90
Onde comprar: cepe.com.br/lojacepe
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