"Como se narra a vida de um homem comum?", questiona-se a voz que desenrola o fio do relato, ciente da escassez de registros arquivísticos e da lacuna que cerca a trajetória de pessoas como o seu pai, um motorista de caminhão sem instrução formal cuja vida se passou nas estradas, dos 22 anos até a velhice.
"O que é meu", livro de estreia de José Henrique Bortoluci que sai agora pela editora Fósforo, é uma resposta possível a essa pergunta. É também uma carta ao pai, não como a de Kafka, fermentada por ressentimento. Mas uma na qual se entremeiam lembranças, depoimentos e pesquisa.
A estrada, nesse sentido de abertura ou incisão que se faz numa paisagem indomada, é a metáfora-guia. Um corte que Bortoluci, sociólogo e professor, produz no material que tem em mãos, alinhavando reflexões pessoais e coletivas.
Em conversa com O POVO, o autor se vale do termo para explicar que, durante a escrita do romance, iniciada antes ainda da pandemia, "as coisas foram se conectando como duas estradas que se cortavam em vários pontos e às vezes caminhavam paralelamente e não se encontravam".
Esses dois caminhos são, de um lado, a história de um país cujo lema é, não por acaso, "governar é abrir estradas", impulsionado por um ideal de modernização selvagem; e, de outro, o itinerário paterno - o "homem comum" cuja experiência de saúde e de doença ele procura refazer, ora mobilizando léxico analítico, ora movendo-se a fim de retomar em mãos a carne da memória e dela obter alguma ordem - uma palavra com que possa nomear os silêncios do pai enquanto estava fora.
"Quase como se tivesse que lidar com dois tipos diferentes de paternidade", conta Bortoluci, refletindo também sobre a variedade de heranças que essas transmissões legam e das quais a epígrafe do volume já é índice importante: "Não há texto sem filiação". Uma frase de Roland Barthes, semiólogo e escritor célebre por evidenciar no seu trabalho essas marcas de pertencimento intelectual e de sangue.
No caso do escritor-pesquisador, trata-se de uma filiação "biológica e afetiva e outra acadêmica, das palavras, das teorias, das narrativas sociológicas", como ele mesmo formula.
Logo, há duas matrizes que se fecundam: a familiar, assentada na figura do pai, um trabalhador habituado às longas jornadas Brasil afora, das quais não há registro escrito nem fotográfico, apenas oral, repassado durante os anos e no curso da rotina de internações a qual é submetido para tratamento de um câncer.
E a matriz da ascensão educacional do filho do caminhoneiro, jovem de futuro promissor que deixa a casa em Jaú, no interior de São Paulo, para se dedicar aos estudos, pavimentando suas próprias estradas para além da língua de origem e das palavras conhecidas, situando-se agora num território de estranhamento a partir do qual ele se volta para o passado-presente.
Um arco de trânsfuga parecido com o da autora francesa Annie Ernaux, Nobel recém-laureada com quem Bortoluci tem sido comparado pelo modo como metaboliza, na escrita, essas metamorfoses de classe - a obra, inclusive, já foi vendida para mais de dez países, entre eles a França.
Entre sociologia e literatura, convocadas nesse esboço de autoanálise do brasileiro, "O que é meu" abre-se à leitura sob múltiplas chaves. Percorrê-lo é se dar conta das feridas da formação nacional, seus processos de extermínio de populações nativas e de pilhagem das florestas, de expansão do capital que vai moldando essa ideia de progresso a todo custo, da alienação dos trabalhadores e de sua exploração sistemática, mas também das potencialidades da educação.
É um retrato pessoal, mas apenas se entendermos que o pessoal é também social. Um romance cujas dobras remetem a episódios de um mundo que Bortoluci supunha que existisse fora do quadro doméstico. O mundo do pai, que continua sendo o seu, na indissolubilidade dos vínculos.
Daí que essa estreia socioliterária se chame assim, "O que é meu", uma declaração não de posse, mas de íntimo reconhecimento de tudo aquilo que sobrevive ao tempo e ao afastamento, à distância e ao estranhamento, ainda que o corpo esteja depauperado e a memória, falhada.
Livro "O que é meu"
De José Henrique Bortoluci
Fósforo editoria
Quanto: R$59 na Amazon (e-book por R$ 31, 91)
O podcast Vida&Arte é destinado a falar sobre temas de cultura. O conteúdo está disponível nas plataformas Spotify, Deezer, iTunes, Google Podcasts e Spreaker. Confira o podcast clicando aqui