Quando o fotógrafo, pesquisador e professor Silas de Paula assumiu a direção do Museu da Imagem e do Som do Ceará (MIS-CE) em 2019, o profissional já tinha um desafio garantido. Como noticiou O POVO na época, era preciso "construir coletivamente o equipamento público e fortalecer relações entre o museu e a Cidade".
A ideia inicial era que a estrutura voltasse a funcionar plenamente para o público em 2020, após reformas desde 2018. Entretanto, a pandemia atrasou o que estava planejado e dificultou outros processos. Um ano depois da reabertura do MIS, a instituição segue com o objetivo de se aproximar da sociedade a partir de uma ação coletiva.
"O MIS é um museu público. Ele só tem continuidade se todos os grupos participarem do processo, senão não tem nenhuma relação de pertencimento", afirma Silas de Paula. Em entrevista, o diretor pontua os desafios da manutenção sustentável do museu, a importância da tecnologia na preservação da memória do Estado e o papel do equipamento "em direção a um futuro mais justo".
O POVO: O senhor, enquanto gestor, tem vivido a transição de governos tanto a nível estadual quanto a nível federal. Como tem sido estar à frente do MIS ao longo desses agora quatro anos, já que o senhor assumiu em 2019, enfrentou uma pandemia, mas, enfim, aconteceu a reinauguração?
Silas de Paula: Nos primeiros anos a gente começou com um grupo gestor pensando este novo MIS - na verdade, não só o MIS, porque o Governo está com outros equipamentos. Eu vou falar apenas do museu, que deveria ter sido inaugurado em outubro de 2020, mas a pandemia atrapalhou tudo e acabamos inaugurando no ano passado. Houve um apoio enorme do governo em relação a isso. Tivemos todo o apoio necessário em termos de orçamento, de pensamento, de discussão e consultores. Houve um grupo junto com a Secretaria de Cultura e o Governo do Estado pensando o MIS em uma nova perspectiva, porque é um equipamento que completa 43 anos em 2023, então ele não é um equipamento novo. A gente não pode esquecer o passado e todo um processo de outros diretores que passaram aqui pelo MIS e o fizeram chegar ao ponto que a gente está hoje, com abordagem mais tecnológica em termos de espaço. Eu reforço sempre: é preciso olhar o passado tendo em vista o futuro para trabalhar o presente. Esse é um lema que não é meu, mas reflete bem o que a gente pensa com o projeto desse novo MIS.
O POVO: Como tem sido encarar a gestão do museu ao longo desse período de transição de governos?
Silas: Eu acho que é uma gestão de continuidade. O governo do Elmano conseguiu dar continuidade e toda mudança leva um tempo de ajuste. O novo governo olha, pensa e tenta entender o processo que não participou, um processo que tem por volta de quatro, cinco anos, mas tem caminhado muito bem. A gente vem tendo o mesmo apoio.
O POVO: Então as perspectivas para o mandato do governador Elmano em relação ao MIS são de continuidade das ações do governo de Camilo Santana?
Silas: Continuidade absoluta. Isso já foi colocado pelo próprio governador sobre dar continuidade a projetos da época do Camilo que ainda não foram terminados, e é um processo contínuo. Então, há a garantia e a continuidade desse processo, o que para a gente é muito bom.
O POVO: A nova estrutura conta com laboratórios de conservação e higienização, espaços para digitalização e restauro digital, laboratório fotográfico, ilhas de edição e outros espaços. Diante disso, como o MIS se diferencia dos outros museus e o que ele retorna para a sociedade?
Silas: O MIS tem uma estrutura que nunca existiu no Ceará. Uma estrutura, por exemplo, de possibilidade de recuperação da memória - inclusive do próprio museu e do Estado. É possível digitalizar e ter a salvaguarda desse processo de um jeito muito mais consistente, porque a gente tem hoje um equipamento que é o melhor da América Latina. Nós podemos prestar serviços para outros estados e para outras instituições. É lógico que há uma defasagem muito grande em todos esses anos, é um processo que vai levar um tempo inclusive vai levar um tempo para restaurar e digitalizar, mas ele está andando. Nós podemos ocupar, inclusive, o lugar da Cinemateca de São Paulo que foi destruída praticamente no governo Bolsonaro e é um equipamento maravilhoso dirigido por uma pessoa que é da área, a Maria Dora Mourão. Estamos tentando fazer parcerias, começando esse processo de parceria. Este ano vai ser um momento de trabalhar parcerias para que a gente tenha não só contrato de gestão com o governo, mas um projeto de sustentabilidade da própria instituição.
O POVO: O senhor falou que o MIS consegue fornecer seu trabalho para outros estados. Isso já está acontecendo ou é um processo que ainda será realizado?
Silas: A gente já fez um trabalho em parceria com o Instituto Moreira Salles (IMS) e estamos conversando com um pessoal do Canadá, entrando em uma tentativa de parcerias. Existe um processo burocrático que precisamos seguir pelo fato de o MIS ser um equipamento público. Os recursos são públicos, então há uma burocracia que precisa ser seguida, mas as coisas estão caminhando bem.
O POVO: Como pessoas comuns que vêm ao museu pela primeira vez conseguem perceber os retornos do equipamento à sociedade? Como conseguem ver, na prática, que a tecnologia está servindo a favor da preservação da memória não só do Ceará, mas do Brasil?
Silas: Ultimamente, há uma necessidade de um encantamento com as coisas, porque eu acho que a nossa sociedade tem uma visão muito distópica do futuro e o museu tenta trabalhar uma relação de encantamento com a vida e com os projetos possíveis. A tecnologia nos ajuda muito porque nós somos um local de projeção mais do que de exposição física. Então, nós temos uma área de imersão e de mapeamento de imagens que tem feito um sucesso enorme. As pessoas ficam maravilhadas com esse processo e com a parte educacional. É fundamental você trabalhar com grupos individualizados. O papel do museu é um papel educador e o lema também é "em direção a um futuro mais justo". Então, é perceber os grupos em todos os sentidos. Eu nunca uso "comunidade" no singular, sempre uso no plural. Todas as comunidades têm que ser percebidas. É lógico que há um foco em imagem e som na educação, na tecnologia, temos que nos preparar não só na arte e na cultura, mas como difusão de conhecimento, preparar os nossos jovens ou a gente mesmo aprender um pouco. Que futuro é esse que a gente tem pela frente? É passar a ter uma postura mais crítica, mas também de encantamento em cima desse novo processo. É isso que o museu vem tentando fazer e acho que está fazendo muito bem.
O POVO: Uma das grandes questões presentes desde a reabertura do MIS é a tecnologia. O museu se propõe a oferecer ao público uma experiência mais imersiva a partir também da tecnologia. Que equipamentos foram adquiridos e como eles são utilizados para as programações? Existe o desejo de conseguir mais instrumentos? Se sim, quais?
Silas: A tecnologia, quando chega em um local, está praticamente obsoleta. Ela é algo que tem que ser continuamente renovada e perseguida. Em tese, nós temos as últimas tecnologias em termos de projeção, softwares e equipamentos. Há equipamentos de digitalização que só nós temos na América Latina. É um equipamento que dá pra atender, lógico, dependendo da demanda, qualquer parte do Brasil quanto a digitalização de filmes e de uma série de questões. Só nós temos e é isso que estamos começando a trabalhar. Em termos de mostra, de encantamento e possibilidade de exposições, a gente tem os projetores Christie, os kinects que podem trazer uma certa interatividade e novos headsets e óculos de realidade virtual que a gente vem trabalhando nesse processo. A gente tem uma parceria com a UFC. São quatro professores e dez alunos estagiários recebendo bolsa em um projeto que desenvolve protótipos para trabalharmos com realidade aumentada, realidade expandida e todos os processos nesse sentido. Ao mesmo tempo, a gente inaugurou uma exposição chamada "O Meio Que Risca a Pedra", com um pensamento mais voltado à questão ambiental e com uma tecnologia um pouco mais avançada. É um caminho, mas a gente ainda está na fase do encantamento. Esse encantamento tem que vir junto com uma visão crítica: discutir o que é NFT, o que é criptoarte, metaverso… Nós não podemos deixar de ter uma visão crítica em cima desse processo. A tecnologia não é neutra. Como a gente é um espaço de memória, mas um espaço educacional, essa é a nossa grande história. É pensar isso, aprofundar, discutir e tentar formar grupos com uma visão um pouco mais de futuro, tendo em vista o passado que a gente viveu.
O POVO: O MIS é um museu que se destaca pelo aparato tecnológico, mas a tecnologia acaba se renovando e se atualizando. Como se preparar e trabalhar para que essas tecnologias do museu não fiquem obsoletas?
Silas: Primeiro, é preciso uma mudança de mentalidade. Ninguém critica, em tese, a possibilidade de obsolescência de tecnologias quando elas vão para tudo que seja de fora da cultura, mas quando vêm para a cultura a primeira questão é que os equipamentos vão ficar obsoletos. Qualquer processo implantado precisa de manutenção e revitalização. Quando é na cultura, é "dinheiro gasto" ou "exagero". Muitas pessoas não se lembram de como a arte e a cultura salvaram a saúde mental da população a nível mundial. Dito isso, é lógico que há obsolescência, assim como em qualquer outro processo. Se a sociedade tiver em mente que isso é um investimento governamental, não um gasto, as coisas ficam mais fáceis. Por outro lado, o cobertor é curto. O Estado não tem todos os recursos para resolver os problemas de todo o mundo. Existem prioridades. Como a gente está em um momento bom, dá para fazer parceria, prestar serviço e procurar alternativas para além do contrato de gestão com o Governo. Muitos equipamentos foram adquiridos pelo próprio trabalho do MIS, com parcerias. Esse tipo de equipamento fascina muito pela novidade. Há empresas querendo vir para cá e usar o museu como um espaço de venda, o que é algo que precisa ser visto porque o MIS não é agência de publicidade. A gente tem uma relação com imagem, som, cultura, arte e educação. Mas acho que podemos prestar serviço e procurar sustentabilidade sem depender só do governo.
O POVO: Quais estratégias são utilizadas pelo museu para apresentar ao público as possibilidades oferecidas a partir da estrutura do espaço?
Silas: A gente está começando um trabalho de pesquisa de satisfação do público, mas em qualquer pesquisa as pessoas têm uma certa preguiça de responder. Então, temos que transformar esse processo em algo mais tecnológico e mais lúdico dentro de um âmbito de conversa com as pessoas para saber mais do que elas têm a dizer, como estão percebendo o nosso trabalho. É algo que a gente está desenvolvendo para facilitar essa interlocução. Não tem nada que funcione melhor que responda à sua questão do que corresponder às demandas da sociedade. Se a gente fizer isso, funciona melhor. Não são os políticos que vão segurar o museu. É o trabalho que a gente faz e se a gente corresponde às expectativas da sociedade. Isso dá garantia. O MIS é um museu público. Ele só tem continuidade se todos os grupos participarem do processo, senão não tem nenhuma relação de pertencimento.
O POVO: Quais são os principais desafios atualmente na gestão do MIS para ser um equipamento sustentável? Existe a perspectiva de cobrança de ingressos futuramente, visto que agora a entrada é gratuita?
Silas: Isso está sendo discutido e visto dentro do governo para saber como vamos resolver. Mas eu tenho uma posição, claro que não falo pelo Governo. Meu jargão é: "Cobra de quem pode pagar para quem não pode, poder entrar". O nível de exigência para a sustentabilidade é muito alto. Penso no caso de ter grupos que não vão pagar, um dia gratuito na semana, ou seja, seguir alguns critérios que definem esse processo de uma forma mais democrática. Acho que os turistas que vão para a Europa não entram de graça e acham a coisa mais maravilhosa do mundo - e pagam cara. Pensar nesse processo é algo que está sendo visto e discutido com a Secult para saber o melhor caminho. Eu defendo que existam critérios. O ingresso por si só não sustenta museu algum, mas ajuda no cotidiano, porque se de repente quebrar uma maçaneta, por exemplo, há recursos para consertar. Existe um processo burocrático enorme. Se eu tenho esses recursos, consigo manter o cotidiano de forma mais fácil. O que vai manter o museu é a relação com o contrato de gestão e principalmente parceria de patrocínios que a gente tem que procurar para a sustentabilidade dele. Está no começo, mas eu acho que é possível.
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