"E tem cinema no Ceará?", foi a reação da jovem Lília Souza, 20, ao assistir a um filme cearense pela primeira vez durante a disciplina eletiva de Cinema e Audiovisual no ensino médio. O estranhamento partiu de uma visão de sétima arte restrita aos grandes centros, que tinha, até então, como referências apenas a badalada Hollywood e os estados no sudeste do Brasil. A mudança de Lília de Choró, município do sertão do Estado, para o bairro Bom Jardim, em Fortaleza, trouxe não somente a descoberta do cinema cearense, como também novas perspectivas profissionais.
A história dela está intimamente ligada às atividades da Bom Jardim Produções, uma produtora independente que atua com cinema e audiovisual na periferia de Fortaleza. Com atividades iniciadas em 2008, o grupo acumula uma extensa filmografia com curtas e médias-metragens. Além da produção, outra frente de trabalho tem sido a educação, bandeira reforçada com o lançamento, em 2023, do Curso de Cinema e Audiovisual "Periferia em Foco", realizado em parceria com a Associação Cultural Santa Terezinha. A proposta de capacitar jovens periféricos a seguir carreira no audiovisual.
Lília foi uma das alunas contagiadas após participar de formações ministradas pelos cineastas Josenildo Nascimento e Gislândia Barros, que fazem parte da Bom Jardim Produções.
"Foi uma dualidade para mim, porque eu fiquei pensando 'será que realmente gosto disso ou foi uma oportunidade que apareceu e eu me agarrei nela, porque estava atravessando um momento difícil?'. Enfim, fiquei em crise. Mas eu realmente me vejo no audiovisual, só não no som", brinca a jovem.
Durante as atividades formativas, descobriu a direção de arte como uma paixão. "Quando falava a cena, eu já imaginava os objetos e o que seria usado em cena", conta Lília. De 2019 para cá, aprofundou os conhecimentos e passou a integrar a equipe da produtora.
"Em 2020, estava terminando o ensino médio e eles falaram comigo perguntando se eu queria produzir um roteiro. Na produtora, já fiz diversas funções e até direção, me aventurei para entender o que acontece no set", compartilha, orgulhosa. Agora, quer alçar novos voos e desbravar os caminhos do mercado cinematográfico. "Me vejo muito no audiovisual e comunicação, de forma geral, me empolga e realmente eu gosto muito. Agora eu quero fazer um longa na produção", projeta.
Periferia em foco
Qualificar jovens nas diferentes áreas do audiovisual é no que se baseia o Curso de Cinema e Audiovisual "Periferia em Foco". Durante encontros que somam 80h/aulas são abordados desde a história do cinema, passando por técnicas e roteiro, tendo como fechamento aulas sobre captação de recursos e a importância de criar coletivos.
As inscrições e seleção de alunos realizada em março ofertou 25 vagas para pessoas a partir de 15 anos interessadas em audiovisual. Realizado às terças e quintas, de 14h às 17 horas, na Associação Cultural Santa Terezinha, as aulas tiveram início no dia 21 de março.
"No início, nós pensávamos: será que vai dar aluno? Será que alguém vai se inscrever? Então compramos cartazes, fizemos panfletos e a notícia circulou", comemora Gislândia Barros, 32, coordenadora administrativa e professora de câmera. Na primeira edição, a demanda já surpreendeu: foram mais de 50 inscritos para as 25 vagas.
O cineasta Josenildo Nascimento fala sobre a idealização da formação. "Esse curso é fruto da demanda. Com o tempo, a gente resolveu pôr toda equipe para fazer formações e por isso passamos a ter um bom currículo, graças a Deus. Resolvemos abrir essa formação, agora, porque acumulamos bastante experiência, porque não paramos de produzir e estamos cada vez mais estudando", explica. Parcerias com o Centro Cultural Bom Jardim e formações em equipamentos públicos da cidade amadureceram o viés pedagógico da produtora.
"Nosso grande objetivo com essa escola é produzir conteúdo de qualidade na comunidade e encontrar as pessoas aqui também. Não queremos ter que chamar pessoas 'de fora' e, sim, ter aqui, mas é preciso que eles tenham uma bagagem. Quando tem demanda, tem investimento", declara ele.
Com previsão de acontecer durante o primeiro e segundo semestre de 2023, o Periferia em Foco conta com apoio da Companhia de Gás do Ceará via Lei Mecenato Estadual (Nº13. 811, de 16 de agosto de 2006), de fomento às atividades culturais através de conjugação de recursos do poder público estadual com os de instituições privadas, a partir da renúncia fiscal nas modalidades doação, patrocínio e investimento.
Leia também | Confira matérias e críticas sobre audiovisual na coluna Cinema&Séries, com João Gabriel Tréz
Curso de Cinema da Bom Jardim Produções
Onde acontece: Associação Cultural Santa Teresinha (Rua B, 1352, Conjunto Palmares, Granja Lisboa)
Como ajudar: pelo telefone (85) 98652.4154 ou Instagram @bomjardimproducoes
Informações sobre inscrições e acesso às produções em: linktr.ee/bomjardimproducoes
Virar referência
Se improvisar e "dar um jeito" de fazer coisas grandes com pouco recurso é uma máxima dos artistas, na carreira audiovisual não é diferente. Somando a experiência adquirida no teatro de rua e movidos pelo desejo de fazer acontecer, Josenildo Nascimento e Gislandia Barros decidiram estrear no cinema com o filme "O inferno é aqui", lançado em 2009.
"Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, você pode fazer cinema", defende Josenildo. À época, a dupla não tinha nem câmera e por isso emprestou, por um mês, de um órgão público, para gravar o curta-metragem de terror.
"Como eu fazia quadrinhos, pensei 'qual a diferença do filme para os quadrinhos?' 'é que eu vou gravar'. É a imagem em movimento, mas segue a mesma lógica de enquadramento", pensou Josenildo. De 2008 para cá, as produções, que iam do terror ao romance, não pararam e os DVDs se tornaram objeto de disputa nas locadoras no Bom Jardim.
"O pessoal locava direto, dava feedbacks. Uma vez um cara estava na moto e me parou na rua e disse 'cara, tu me fez chorar, o filme que vocês fizeram é emocionante'", conta o cineasta. "A gente ia nas locadoras e via o nomezinho reservado", completa.
Gislândia Barros, que desde pequena quis ser atriz, aperfeiçoou as habilidades na atuação e expandiu conhecimentos para áreas como edição e direção. "Eu fui desenvolvendo outras habilidades artísticas ao longo do tempo, no começo eu queria ser só atriz. Então comecei a dirigir, a produzir também, e no "Botija" eu fiz a direção de arte. Em 2019, e defini que quero isso para minha vida, tanto a produção como atuar, gosto muito de atuar", demarca.
Para o futuro, almejam ser uma produtora reconhecida por gerar oportunidades aos novos talentos e o Bom Jardim referência em audiovisual. Mas hoje, os desafios ainda são garantir o financiamento da escola, ter uma sede própria e expandir as formações para outras comunidades.
"A gente às vezes fica procurando profissionais, porque você ter um profissional bom mesmo é preciso ter um conhecimento técnico daquilo que está fazendo. A gente quer proporcionar um curso com as técnicas do audiovisual, porque o grande desafio é esse", diz Josenildo.
Filmografia
Dendi, o mal está online (2021)
Terror/Suspense, 20 min.
Produzido e dirigido por Josenildo Nascimento e Gislândia Barros
Sinopse: Larissa, uma garota de 10 anos, desaparece misteriosamente, mas algo sobrenatural pode revelar seu paradeiro.
A garotinha (2018)
Suspense, 32min
Produzido e dirigido por Josenildo Nascimento e Gislândia Barros.
Sinopse: Wagner namora Carla há três meses, mas revelações surpreendentes sobre o passado dela podem comprometer esse relacionamento.
É o tipo da coisa (2020)
Comédia romântica, 28min
Produzido e dirigido por Gislândia Barros e Josenildo Nascimento.
Media-metragem gravado durante a pandemia de coronavírus. O filme foi selecionado no edital Arte em rede.
Sinopse: o casal Jonas e Cléo, cuja relação está por um fio, se vê obrigado a conviver juntos durante o lockdown.
Nosso território tem história, mulheres de fibra
Documentário, aprox 20min
Produzido por Josenildo Nascimento
Sinopse: "Nosso território tem história - mulheres de fibra" é o primeiro episódio de uma série documental que conta como se deu o protagonismo de mulheres que participaram da luta pela água e pelo alargamento da principal avenida que cruza alguns bairros do território do Grande Bom Jardim, periferia de Fortaleza.
Histórias assombrosas que minha mãe contava (2022)
Websérie, episódio 1, aprox. 21min
Produzido por Josenildo Nascimento e Gislândia Barros
Sinopse: o episódio “Os Urubus”, fato contado por Joaquina dos Santos Lopes (1925 -2005) e repassado para essa nova geração por Marlene Ferreira. Os urubus é uma história verídica ocorrida em Aratuba (CE) envolvendo o senhor Aristides Cipriano (nome alterado) em estranhos fenômenos sobrenaturais.
No Vale da Morte (2022)
Websérie, episódio 2, aprox. 21min
Produzido por Josenildo Nascimento e Gislândia Barros
Sinopse: o segundo episódio de "Histórias assombrosas que minha mãe contava" é "No vale da morte", fato acontecido com João Ourives, pai de Marlene Ferreira que vai narrar o acontecido nesta mais nova obra da Bom Jardim Produções.
Botija
Suspense / comédia - Aprox 65min
Produzido por Josenildo Nascimento e Gislândia Barros
Direção: Josenildo Nascimento
Sinopse: baseado numa história real, Botija narra um evento sobrenatural que aconteceu em 1965 e conta a história de uma garotinha que recebeu de uma alma penada a missão de desenterrar um caixão de dinheiro. mas seu pai ganancioso toma a frente e promete castigar a menina, caso ela esteja mentindo.