A fronteira entre o simbólico e o concreto na cultura e criatividade faz despontar diferentes desafios para mensurá-las sob o ponto de vista econômico — que vão, eles mesmos, do simbólico (como valorar o intangível?) ao concreto (como dar conta de setores nos quais a informalidade é tão presente?). A partir de dados do chamado PIB da Economia da Cultura e das Indústrias Criativas (Ecic), divulgados em abril pelo Observatório Itaú Cultural, o Vida&Arte debate o recorte cearense.
O levantamento tem base nos mais recentes dados consolidados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2020. No escopo da Ecic, constam áreas como atividades artesanais, moda, cinema, música, arquitetura, desenvolvimento de software e jogos digitais, design, artes cênicas e visuais e patrimônio, entre outras.
A contribuição dos setores culturais e criativos no PIB do Brasil foi de 3,11% e, do Ceará, de 0,45%. Na série histórica do levantamento, que vai de 2012 a 2020, o número nacional alcançou o maior patamar, mas o estadual vem passando por quedas. De 2018 a 2020, foi de 1,32% a 0,45%, menor índice registrado.
Ao mesmo tempo que a queda acende o alerta, é preciso levar em conta que dados de PIB precisam ser observados em contexto. Se há o crescimento robusto de uma atividade econômica, a porcentagem das outras pode ser "achatada" por isso.
Destacando a pesquisa como "oportuna e valorosa", a professora e consultora em Economia Criativa Cláudia Leitão destaca "desafios de mensuração dos impactos econômicos" dos setores. "É preciso compreender os limites de mensuração do PIB, sobretudo, o que se refere aos bens e serviços cuja maior natureza é o simbólico e o intangível", aponta.
"A informalidade dos empreendimentos criativos é um óbice para a produção do PIB dos setores culturais e criativos, sobretudo no hemisfério Sul. No Brasil, os dados que produzem o PIB são de natureza secundária, ou seja, a ausência de pesquisa de campo para levantamento de dados primários também vulnerabiliza os números obtidos", avalia a ex-secretária da Cultura do Ceará (2003-2006) e criadora e primeira gestora da Secretaria de Economia Criativa do Ministério da Cultura (2011-2013).
"Precisamos de pesquisas que foquem em dados primários e que possam trazer informações menos genéricas sobre o tema. Prefeitura, Governo, Sistema S e iniciativa privada podem interagir e resolver", dialoga o gestor cultural Luis Carlos Sabadia, que foi presidente da Câmara Setorial da Economia Criativa da Agência de Desenvolvimento do Estado do Ceará (Adece). "Com os dados que brotarem da pesquisa, (o próximo passo) é planejar, trazer o tema para o centro das discussões nas áreas de desenvolvimento econômico e cultura das instituições governamentais", sugere.
Cláudia lembra que, historicamente, a média de contribuição do Ceará ao PIB brasileiro é de 2%. "Avaliar os pequenos avanços e decréscimos da Economia Criativa nesse contexto nos conduz a uma pergunta: por que não conseguimos superar esses 2%? Na minha hipótese, porque precisamos ampliar nossa agenda econômica, ou seja, agregar valor ao que produzimos", afirma.
"No entanto, a Economia Criativa não é reconhecida no Brasil (tampouco no Ceará) como alternativa de desenvolvimento, especialmente o sustentável. É hora de revermos o modelo de desenvolvimento do Estado e ampliarmos nosso 'cardápio' econômico", avalia Cláudia. "Temos a possibilidade de interagir uma economia de baixo carbono com a Ecic. Meio Ambiente e Cultura como dois grandes ativos brasileiros", relaciona Sabadia.
"O poder público e o privado devem entender que o valor migrou para o simbólico e o imaginário, não está mais nas coisas em si, mas no que significam, na experiência que proporcionam", defende Alysson dos Reis, designer e diretor da Associação Design Ceará.
Pensando em ações prioritárias, ele aponta como essencial "transformar a economia criativa em política pública, para construir resultados a médio e longo prazo", além da conexão necessária entre poder público, iniciativa privada, academia e quem faz e pensa cultura.
"O poder público precisa criar os canais de diálogo e escutar quem faz esse mercado girar. A iniciativa privada precisa se abrir para um 'novo' modelo de fazer negócios, alicerçado em novas habilidades, em um 'soft power' mais conectado com um novo consumidor", avalia Alysson.
Ao debate, Cláudia soma o Mapeamento das Indústrias Criativas do Brasil, publicado em 2022 pela Federação das Indústrias do Rio, que aponta tecnologia, marketing, publicidade, design e moda como setores em crescimento. "Enquanto os setores das artes e da cultura se mantiveram praticamente invisíveis. Eis aí outro desafio que se refere às diferenças essenciais entre indústrias criativas e economias criativas", ressalta.
"Com a volta do MinC e da Secretaria da Economia Criativa, agora vinculada à de Fomento (comandada pelo cearense Henilton Menezes), volto a acreditar na responsabilidade do Estado em liderar a formulação, a implementação e o monitoramento/governança de políticas públicas transversais para a Economia Criativa brasileira", acredita Cláudia.
A especialista vê "potencial" em uma "política regional" para a área. "Do Maranhão à Bahia, poderíamos desenvolver um plano de Economia Criativa de fomento integrado às dinâmicas de criação, produção, comercialização e consumo de bens e serviços. Temos as qualidades para construirmos um 'Nordeste Criativo' capaz de ampliar o PIB da região ao mesmo tempo em que promova inclusão produtiva, cidadania, inovação, sustentabilidade, biodiversidade cultural, bem comum e bem viver", finaliza.
Números
foi a contribuição da ECIC ao PIB do CE em 2020
é o lugar do CE no NE em relação ao índice interno do PIB da ECIC
dos trabalhadores do CE são da economia criativa (dados referentes ao 4º trimestre de 2022, por serem os mais atualizados)
foi a receita gerada pelas empresas criativas no CE em 2020
Fonte: Observatório Itaú Cultural
Economia criativa tem "grande potencial de crescimento", destaca secretária Luisa Cela
O POVO - O PIB da ECIC no Ceará é de 0,45%, de acordo com o Observatório Itaú Cultural. É um número modesto, mas que coloca o Estado como o 3º do Nordeste com maior contribuição da economia criativa no PIB estadual. Naturalmente, um número precisa ser observado em contexto, uma vez que se há uma atividade econômica central num estado, isso "achataria" a porcentagem das outras. Neste sentido, como a gestão avalia, de partida, o número do PIB local?
Luisa Cela - A iniciativa do Itaú Cultural de desenvolver uma metodologia de contabilização do PIB setorial da Cultura é extremamente relevante, pois como pontuado no seminário realizado avança no desafio de produzir dados e estimativas econômicas confiáveis e internacionalmente comparáveis para o dimensionamento dos setores culturais e criativos no Brasil. Essa iniciativa é extremamente relevante, importante, mas é um início. Ela tem lacunas também. O próprio professor Leandro Valiati, que coordenou a pesquisa, disse que a intenção de reunir os gestores de cultura dos estados seria para ouvir um pouco essas percepções e entender o que os estados estavam fazendo para aprofundar e complexificar o retrato do PIB da Cultura incorporando elementos das lacunas que forem identificadas. A nossa avaliação do percentual do PIB da Cultura no Ceará é positiva, como o terceiro do Nordeste. Nós temos bons números de empresas e temos uma força em potencial importante. Praticamente 8% dos trabalhadores do Estado estão ocupados na economia e nas indústrias criativas. Os números são relevantes: R$11 bilhões em receita e R$2 bilhões de lucro. Esses números, por outro lado, nos permitem um grande potencial de crescimento. O estudo nos apresenta o início de um retrato desse setor econômico no Ceará e nos permite conhecer melhor o cenário, inclusive, para que haja um melhor direcionamento de investimentos e políticas.
OP - Ainda de acordo com dados do Observatório Itaú Cultural, observando a série histórica do PIB da Cultura e Indústrias Criativas no Ceará, chama atenção o movimento recente de queda nos números. De 2018 a 2020, a redução foi de 0,87% — de 1,32% para o atual 0,45% —, com a queda mais acentuada de um ano para o outro ocorrendo de 2019 para 2020, com redução de 0,5%. Como a gestão compreende esse cenário de quedas?
Luisa - O PIB setorial da Economia Criativa acompanha oscilações do PIB geral, apesar de estudos apontarem uma maior resiliência dos setores criativos aos contextos de crise econômica e recessões. Portanto, este cenário de queda deve ter relação com a crise econômica e política vivenciada no Brasil neste período que afetou negativamente o crescimento econômico.
OP - Que tipo de ações são prioritárias para alavancar o cenário da economia criativa no Ceará? Quais áreas da ECIC são centrais na visão da gestão para esse intuito?
Luisa - O fortalecimento da economia criativa passa por um conjunto articulado de ações capazes de criar um ambiente favorável para investimentos nos setores criativos. Construir políticas de formação e qualificação profissional, oferta de crédito e outras modalidades de fomento, existência de infraestrutura de criação e produção, são alguns exemplos. O Ceará tem uma força em algumas áreas, a moda, a gastronomia, o audiovisual e a música, são alguns destes. Também o fato de Fortaleza ter sido escolhida como cidade criativa do Design.
OP - Como a Secult avalia o papel da iniciativa privada nesse movimento? Que tipo de parcerias — institucionais, de apoio ou de recursos — podem ser feitas para o fortalecimento da economia criativa e cultura no Estado?
Luisa - É fundamental. O fortalecimento da Economia Criativa só acontecerá com um somatório de esforços entre poder público, iniciativa privada, instituições de ensino, não existe outro caminho possível. Tanto em investimentos compartilhados, quanto em fomento à iniciativas já existentes.
OP - No Estado, a cultura popular e tradicional é uma das forças inegáveis do setor, ainda que não seja necessariamente presente em dados oficiais, sobretudo em termos econômicos. De que forma é possível cruzar as expressões populares com o potencial da economia criativa?
Luisa - A cultura popular já é uma grande mobilizadora do potencial da economia criativa. Imagine só, a força econômica do carnaval e do movimento junino? Inclusive foi uma das lacunas apontadas para Itaú Cultural, a ausência destas manifestações que possuem uma força que não podem ser desprezadas, principalmente no Nordeste. Ou seja, possivelmente a participação da cultura no PIB do Estado é ainda maior. E a partir do estudo do Itaú, vamos aqui no Ceará, junto a Funcap e ao Ipece somar esforços para aprofundar dados, informações e conhecimento sobre a força da economia criativa no Ceará.