 
            Há 167 anos nascia em uma pequena vila de Freiberg, atualmente chamada Príbor, na República Tcheca, o filho primogênito de Amália Nathansohn e de um comerciante de lãs, Jacob Freud. Registrado na Bíblia da família como Schlomo Sigismund, a forma Sigmund foi como preferiu adotar posteriormente. Sigmund Freud, o homem que chacoalhou a humanidade ao sustentar que somos regidos pelo inconsciente, que aboliu radicalmente as fronteiras entre o normal e o patológico, que afirmou serem os sonhos a via régia de acesso ao inconsciente e que há prazer no desprazer, disse certa vez ao amigo Oscar Pfister, que "essas coisas psicanalíticas só são compreensíveis se forem relativamente completas e detalhadas, exatamente como a própria análise só funciona se o paciente descer das abstrações substitutivas até os ínfimos detalhes. Disso resulta que a discrição é incompatível com uma boa exposição sobre a psicanálise. É preciso ser sem escrúpulos, expor-se, arriscar-se, trair-se, comportar-se como o artista que compra tintas com o dinheiro da casa e queima os móveis para que o modelo não sinta frio. Sem alguma dessas ações criminosas, não se pode fazer nada direito". Já o escritor, romancista e poeta Stefan Zweig foi quem redigiu um dos retratos mais realistas do filho de Amália: "Não se podia imaginar um indivíduo de espírito mais intrépido. Freud ousava a cada instante expressar o que pensava, mesmo quando sabia que inquietava e perturbava com suas declarações claras e inexoráveis... quando procuro um símbolo da coragem moral - o único heroísmo no mundo que não exige vítimas - vejo sempre diante de mim o belo rosto de Freud com sua clareza viril, com seus olhos sombrios de olhar reto e viril".
Freud foi um Iluminista que trouxe para a claridade da ciência os processos mais obscuros da alma. Sua invenção, a psicanálise, é uma práxis regida pela ética do desejo inconsciente e pelo compromisso que se estabelece entre o sujeito e o seu desejo. Quando falamos de ética do desejo significa sustentar a estrutura de falta do inconsciente. Somos sujeitos da falta, da incompletude, do desamparo. Não há nada nem ninguém que preencha essa condição faltante muito embora, na lógica capitalista, os objetos de gozo (de consumo) são apresentados como sendo aquilo que possibilitam ao sujeito a ilusão de ser possível a satisfação plena. Portanto a ética da psicanálise não é curar, não é fazer o bem, não é trazer a felicidade. Isso é coisa de coach! O que o analista faz é acolher as demandas do analisante e não responder a essas demandas. O que o analista faz é oferecer um vazio para que o desejo do paciente se realize como desejo do Outro.
O mundo mudou radicalmente desde as pacientes histéricas que possibilitaram o nascimento da psicanálise. A contemporaneidade tem provocado profundas transformações na forma como vivemos, como sofremos, como nos relacionamos com os outros. As redes sociais e a necessidade de super exposição de si dizem muito acerca desse tempo. Um tempo de onipotência narcísica. Tempo onde o outro diz quem eu sou. Um tempo ancorado na impossibilidade do sujeito de anunciar seus conflitos. Daí a epidemia de depressão, por exemplo, uma patologia do narcisismo. Vivemos em um tempo onde faltam narrativas sobre as próprias emoções. E isso cobra um preço alto. Os sujeitos se desresponsabilizam com relação à própria vida, dopados, anestesiados, entediados, alheios ao próprio desejo.
Enquanto prática discursiva, a psicanálise faz um corte radical com as práticas ortopédicas que pretendem consertar o sujeito. Atravessar um percurso analítico não significa curar-se do que você é, e sim, deparar-se com o que há de pior em você. A partir daí uma outra posição subjetiva entra em cena. Devemos isso ao genial Sigmund Freud! O também genial Guimarães Rosa no seu conto "O Espelho" conseguiu traduzir esse encontro do sujeito consigo mesmo, quando diz: " ...E o que enxerguei por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo, senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era, logo descobri...eu mesmo! O senhor acha que algum dia ia esquecer essa revelação?"
Sabrina Matos é psicóloga e psicanalista, professora de Teoria Psicanalítica na Unifor, pesquisadora do LAEpCUS - Laboratório de Estudos sobre Psicanálise, Cultura e Subjetividade, curadora do podcast Psicologia Polifônica, articulista e colunista do O POVO