Na segunda metade de “Salvar o fogo” (Todavia), novo romance de Itamar Vieira Junior, o narrador sentencia: “Ela reúne os fios das histórias como se dispusesse de um tear e urdisse um cobertor”. Ela é Luzia, filha de Mundinho, agricultor cuja linhagem remonta aos índios tupinambá, no sertão baiano, às margens do rio Paraguaçu. O tempo se situa entre o final dos anos de 1960 e o início dos 1970.
É em torno dessa “condenada da terra” que a história recém-publicada do autor de “Torto arado” avança e recua, num movimento de cerzir em pontos muito miúdos uma trama de séculos de violência e luta que demarcam a formação do Brasil desde a colônia até hoje.
Luzia, a louca, a feiticeira, a amaldiçoada. Mulher numa família de arrancados do chão, irmãos e irmãs que se dispersam país afora à procura de trabalho e vida mais digna, já que as terras da Tapera, localidade onde vivem, têm dono desde que o mundo é mundo: primeiro a igreja, cujo mosteiro exerce controle espiritual e material sobre os viventes; depois os capitalistas. Jamais quem realmente é parido no barro vermelho da região.
Esse é o núcleo tensivo de “Salvar o fogo”, a parte do meio de uma trilogia que tem como macro-tema “a relação de homens e mulheres com a terra”, num ciclo de “tantas desventuras que é marcante no nosso cotidiano”, de acordo com Itamar.
Por telefone, o escritor, que estará em Fortaleza na próxima sexta-feira (12) para o lançamento da obra, explica ao O POVO que o livro tem um vínculo de consanguinidade com o premiado “Torto arado”, que ultrapassou a marca dos 700 mil exemplares vendidos de 2019 para cá.
“Essa história nasceu durante a escrita de ‘Torto arado’, tem pontos de aproximação, mas também tem pontos de divergência. É outra perspectiva”, aponta o autor, acrescentando que, no primeiro, “a comunidade estava unida contra a opressão”, enquanto neste ela “está envenenada pela religião e se autofagocita”.
A referência ao ódio fundado na crença e recortado contra um panorama de exploração dos corpos de trabalhadores, sobretudo se negros e mulheres, guarda relação direta com a atualidade brasileira, essa mesma em que formas de trabalho análogo à escravidão convivem com outros regimes de exaustão laboral.
Em “Salvar o fogo”, Luzia se torna alvo de uma hostilidade que se espalha feito rastilho, de modo a expiar os humores ruins da vila assombrada por histórias de fogo e pecado, danação e castigo. Em nome de uma salvação com a qual os padres-latifundiários encantam e dominam, atribuem à mulher o papel atávico da bruxa.
Dividido em quatro partes – “A vingança tupinambá”, “Luzia do Paraguaçu”, “Manaíba” e “A alma selvagem” –, o novo livro retoma, de muitas maneiras, o universo de “Torto arado”, seja no tropo principal, seja em sua organização interna, expandindo-o e aprofundando dramas de subalternizados, num resgate de fios perdidos cuja metáfora se explicita nos gestos da protagonista.
A partir deles, Itamar elabora um conjunto de marcos ficcionais dentro do mesmo território. Em vez de Belonísia e Bibiana, as heroínas do romance anterior, entra em cena outra galeria de personagens, da qual Luzia é o centro de onde os acontecimentos se irradiam. Mas há também Moisés, as irmãs “Zazau” e “Mariinha”, além de outros cuja história anônima se estica para geografias diversas, numa errância de migrantes que é também a sina de outros brasileiros.
“Partindo da ideia de que literatura é imaginação”, reflete Itamar, “eu diria que me interessam as personagens que foram invisibilizadas, apagadas pela história, que a gente sabe que quase sempre é contada pelos ditos vencedores”.
Como exemplo, o escritor cita a escravidão e o Estado nacional, “que destruiu arquivos que poderiam ser importantes para a gente repensar nossa história”.
É essa urdidura que Luzia empreende, mesmo iletrada e à mercê dos perigos de uma aldeia mesmerizada diante do que não conhece e submetida ao mandonismo político: não o regresso às origens, de resto impossível, mas o lento trabalho de costura do baú extraviado onde se guarda a memória ancestral e se alimenta o fogo da vingança.
Lançamento de "Salvar o fogo"
Salvar o fogo
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