Voltemos aos anos 1990, quando a versão da Disney de "A Pequena Sereia" não saía do meu vídeo cassete. A fita VHS rebobinada de novo e de novo até a exaustão (que durava a vir) me fascinava. De todos os filmes do estúdio, que em 2023 completa seu centenário, a história da sereia Ariel foi a que me acompanhou da infância até a fase adulta. Então, por volta de 2017, não foi surpresa ter ficado ansiosíssima com os rumores de que uma versão em live action seria produzida pela Walt Disney.
Notícia por notícia, as expectativas quanto ao longa de Rob Marshall, mais conhecido pelo talento com musicais e direção dos filmes premiados "Chicago" e "Memórias de uma Gueixa", foram crescendo e dividindo opiniões. O maior debate girou em torno da escolha de Halle Bailey, cantora e atriz negra, como protagonista. Apesar da diferença racial com a personagem da animação, Rob e Lin-Manuel Miranda (responsável pela adaptação das icônicas canções para o live action) concordaram que Halle era perfeita para o papel.
Contornando a desaprovação de alguns fãs, uma onda massiva de comentários racistas, o desenvolvimento técnico para encenar uma trama que se passa majoritariamente no fundo do mar e, de quebra, a pandemia de Covid-19, o filme foi concluído e tem sua estreia hoje, 25 de maio, nos cinemas brasileiros.
A convite do Vida & Arte, participei da cabine de imprensa e pude assistir ao filme antes do lançamento. Expectativas de anos à parte, me preparei para a experiência e, bem no começo do filme, o primeiro presente: o trecho destacado do conto original da "Pequena Sereia" de Hans Christian Andersen (publicado em 1837). "As sereias não possuem lágrimas e, portanto, seu sofrimento é muito maior que o nosso", numa tradução livre. A adaptação de Rob Marshall entrega todos os elementos conhecidos da animação de 1989, mas, como a citação sugere, tudo parece mais profundo e melhor explorado.
O remake se passa em 1830, numa ilha fictícia do Caribe, bem diferente do cenário europeu original. O povo do mar possui uma mitologia elaborada, com um Rei Tritão (Javier Bardem) consumido pelo ódio e a desconfiança em relação aos humanos. Ele divide o domínio dos mares com as sete filhas, que se juntam durante a Lua de Coral para uma reunião de família.
Ariel, a mais nova, ignora seus deveres reais por estar constantemente sonhando com o "mundo da superfície", pensando nos comportamentos humanos e no desejo ardente em explorar esse universo que tanto a fascina, apesar da rixa mortal entre os dois povos.
Ao mesmo tempo, em terra firme, temos um príncipe Eric (Jonah Hauer-King) muito interessado em viagens marítimas, em conhecer novas culturas e colecionar itens de nações estrangeiras. Com esses interesses em comum, a relação de Eric e Ariel se desenvolve de forma muito mais convincente do que o previsível "amor à primeira vista".
Halle Bailey surge, mesmo nas cenas sem fala, provocando um magnetismo que prende a atenção. Com um amplo alcance vocal e um senso de encanto no olhar, Halle conseguiu traduzir uma Ariel própria, engrandecendo a personagem original. Pode-se dizer que o encanto da sereia funcionou muito bem e aqui fico com Rob e Lin: não consigo imaginar alguém melhor para o papel.
Melissa McCarthy está muito bem como Úrsula, e conseguiu, com seu talento nato para o humor, temperar a carismática vilã com um toque mais sarcástico e debochado. Destaque para sua interpretação musical de "Corações Infelizes" ("Poor Unfortunate Souls"), que foi muito bem executada. De forma geral, o resto do elenco parece equilibrado em suas posições. Jonah Hauer-king canta apaixonadamente "No Fundo Dessas Águas" ("Wild Uncharted Waters"), a nova canção de Eric. Sebastião (Daveed Diggs) e Sabidão (Awkwafina) entregam bons momentos cômicos e uma versão repaginada de "Beije a Moça" ("Kiss the Girl"), além do ponto alto do filme com o número musical de "Aqui no Mar" ("Under the Sea").
Os efeitos visuais apresentam problemas de ambientação e de verossimilhança, mas também não atrapalham ou distraem a ponto de tirar por muito tempo a atenção de quem assiste. Com exceção de uma ou outra cena escura demais ou com a utilização consciente de uma atmosfera desfocada para esconder o uso excessivo de CGI, a Disney conseguiu construir cenas marinhas funcionais, convencendo na movimentação das sereias, na coreografia de criaturas marinhas e com fundos vibrantes e coloridos.
No final das contas, a experiência de "A Pequena Sereia" foi muito positiva, divertida e emocionante. A sensação é de assistir a algo bem mais poderoso do que a história de uma princesa que se desfaz de tudo, até da própria voz, para conquistar o amor verdadeiro. O filme consegue ser uma homenagem à animação de 1989, trazendo muitas cenas idênticas, mas se mantendo como algo novo e atual, deixando meu "eu-infantil" e meu "eu-adulto", mais uma vez, apaixonados.
*Valdir Marte é designer, ilustradora e autora com pesquisa sobre o universo de seres mitológicos
A Pequena Sereia
Confira sessões disponíveis em ingresso.com
O podcast Vida&Arte é destinado a falar sobre temas de cultura. O conteúdo está disponível nas plataformas Spotify, Deezer, iTunes, Google Podcasts e Spreaker. Confira o podcast clicando aqui