Flávio Alves quer contar uma história há quase 30 anos. Filho da cidade de Senador Pompeu, ele trabalha para que os detalhes sobre os campos de concentração, capítulo sombrio da história cearense, sejam de forma definitiva fixados na memória coletiva do Estado. O realizador audiovisual assumiu como missão lançar olhar para esse momento doloroso marcado pela seca e pela falta de assistência aos retirantes. Driblando dificuldades orçamentárias, ele se prepara agora para lançar o longa-metragem “Os Sete Campos”.
Buscando maneiras de narrar esse momento histórico, Flávio gravou, em 1994, uma encenação dramática da história do Campo de Patu, na região de Senador Pompeu. Apesar dos desafios, conseguiu compilar uma demo do filme “Serca Seca”, sua primeira produção, mas não a última vez que criaria conteúdo sobre as construções. Agora, está focado em falar dos setes campos que marcaram o Ceará.
A pesquisa para o documentário nunca se encerrou, mesmo durante o período em que Flávio precisou conseguir empregos temporários para pagar as contas. Reuniu, ao longo dos anos, um acervo de 30 terabytes de arquivos, coletados em museus do Ceará e outros estados, emissoras locais, acervos familiares, animações e imagens aproveitadas de seu primeiro filme.
Entre os arquivos enviados para a reportagem, anexou matérias de décadas passadas de jornais que contavam sobre seu primeiro filme. O Vida&Arte, em 20 de dezembro de 1997, escreveu sobre as dificuldades que Flávio enfrentou durante a produção de "Serca Seca". À época, inexperiente e com poucos recursos, acumulou dívidas que o levaram a São Paulo, onde trabalhou como camelô para tentar angariar fundos para seu projeto.
Agora, seu material contém entrevistas inéditas com sobreviventes dos campos, imagens raras de Getúlio Vargas em Quixeramobim, além de trechos inéditos de uma entrevista de Rachel de Queiroz, feita pela TV Cultura de Sobral. Flávio conseguiu reunir fotografias dos campos que, após passar por uma reconstituição, também integram o documentário.
O cineasta explica que a intenção do projeto é criar uma fonte mais completa de informação a respeito do tema. Sobre o campo em Quixeramobim, por exemplo, havia poucas informações disponíveis. Na época em que Flávio produziu “Serca Seca”, sequer se sabia o local exato da construção que reuniu os flagelados de forma desumana. Hoje, ele realiza entrevistas com arqueólogos, historiadores e pesquisadores, que permitem preencher as lacunas em sua pesquisa.
Nas passagens em que não foi possível conseguir imagens de época ou fazer uma reencenação, ilustradores criaram imagens para acompanhar a narrativa. A equipe de “O Sete Campos” é toda composta por cearenses, com ilustradores de Senador Pompeu e animador do Cariri. Já a trilha sonora foi feita por Manassés de Sousa e Pingo de Fortaleza.
Questionado sobre o que gerou tanto investimento pessoal para a pesquisa de décadas, Flávio explica: “Eu sou filho de Senador Pompeu, e na minha concepção eu já vi tudo o que foi produzido [sobre os campos de concentração], principalmente na área audiovisual. Mas pelo tamanho da história, se precisava de um bom documentário, pesquisado, com imagem inédita, contado pelos filhos do campo”, defende.
“Esse material nós tínhamos guardado, mas tivemos que fazer todo um trabalho de telecinagem, digitalização, recuperação de fotos, então todo esse acervo nós tivemos que fazer um grande estudo para recuperar”, detalha Flávio.
Embora a associação imediata de “campo de concentração” seja vinculada aos massacres cometidos pelos alemães na segunda guerra, aqui no Ceará, uma construção foi erguida antes mesmo do primeiro campo nazista.
algo que o poder público desempenhou um esforço considerável para apagar. A distinção importante é que as construções nazistas eram também campos de extermínio, e no Ceará, embora houvesse mortes, essas foram decorrentes de doenças, fome e sede.
“Praticamente a mesma mão de obra foi usada aqui. As pessoas eram trazidas por trens, eram aprisionadas e eram enterradas em valas. Então por isso nós temos que revelar, através dos depoimentos inéditos, o que essas pessoas passaram”, explica Flávio.
A expectativa é que “Os Sete Campos” esteja finalizado até setembro. A produção espera que, com o lançamento, possa levar o filme para ser exibido em vários festivais de cinema. Já existe negociação com serviços de streaming que buscam comprar os direitos do documentário para seus catálogos, e traduzi-lo para outros idiomas.
E Flávio, que dedicou 30 anos de sua vida a esse projeto, quando questionado sobre o que fará após ver a culminância de todos os seus esforços no cinema, responde: “O próximo passo é montar uma série com dez episódios”.
Os campos
O primeiro campo de concentração foi criado pelo coronel Benjamin Liberato Barroso, interventor federal no Estado, durante a seca de 1915: o Campo do Alagadiço, no atual bairro São Gerardo. O objetivo era impedir a migração massiva de retirantes da seca, os "flagelados", de chegarem à Capital. A história das secas e dos retirantes foi abordada por grandes nomes da literatura brasileira, como por Rachel de Queiroz em seu primeiro romance, "O Quinze", e Graciliano Ramos em "Vidas Secas". Único preservado, o campo do Patu foi tombado em Senador Pompeu em 2019. O espaço reúne doze casarões, três casas de pólvora, um cemitério e uma barragem.
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