"Carolina Maria de Jesus: Cartografia crítica" (Edições Carolina) reúne leituras críticas de novas pesquisadoras e pesquisadores sobre a obra da autora. Foram selecionados nove artigos e uma entrevista entre diversos textos enviados por acadêmicos e acadêmicas de todo o país. A curadoria levou em consideração origens e condições de gênero, raça e classe, importantes para ampliar a compreensão da fortuna crítica da escritora como aqueles que tratam dos impactos dos processos de edição de seus livros, além da versatilidade temática e de gêneros que compõem suas narrativas. Para este caderno especial, entrevistamos as pesquisadoras e organizadoras do livro, Maria Clara Machado e Maria Farias.
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O POVO: Vocês receberam textos críticos de todo o país a partir das narrativas de Carolina. Como foi o processo de escolha dos publicados?
Organizadoras: Sim, recebemos textos de pessoas de diversas partes do país. Escolhemos os textos a partir de alguns critérios, como a necessidade de ser texto crítico, estilo artigo académico, portanto, infelizmente, não pudemos aceitar textos literários; procuramos escolher textos que tratassem de diversos aspectos da obra da autora, de modo que tivemos de recusar vários artigos que abordavam o Quarto de despejo para que a publicação não tratasse apenas desse livro, já que queríamos apresentar críticas de pontos distintos da obra. Também não queríamos tratar apenas do caráter contestatório da autora, pois já há muito material crítico sobre isso, de modo que buscamos escolher textos que apresentassem análises diversas, como, por exemplo, sobre o paratexto das obras ou análise linguística sobre o registro escrito usado por Carolina Maria de Jesus, entre outras coisas. Além disso, buscamos escolher artigos cuja argumentação estivesse clara e bem desenvolvida, ou seja, que anunciasse uma discussão e de fato desenvolvesse bem o tema anunciado.
O POVO: A versatilidade de temas e gêneros da obra parece se refletir nos marcadores (de gênero, raça e classe) dos analistas. O que esse grupo escolhido e suas produções representa para a fortuna crítica da autora?
Organizadoras: Desde o início do processo de organização do livro, pensamos a Antologia como um espaço crítico em que fosse não apenas possível, mas desejável, a presença de uma multiplicidade de vozes e interpretações que fizessem jus à dimensão insurgente da obra literária de Carolina Maria de Jesus. Era muito importante para nós, como organizadoras da obra e estudiosas de literatura de autoria negra, que as autoras e autores da Antologia viessem de lugares de fala distintos, seja por sua identificação racial e/ou de gênero, por sua filiação acadêmica, por sua localização regional. Atentas a isso, procuramos estimular a participação de pesquisadoras e pesquisadores de grupos sociais diversos, bem como de diferentes regiões do país e de áreas de conhecimento plurais que, de alguma maneira, pudessem incrementar a análise das obras de Carolina de Jesus e oferecer, às interessadas e interessados na produção literária da autora, possibilidades de interpretação pouco ou ainda não exploradas. Acreditamos que essas novas miradas são capazes de promover alguns dos deslocamentos que sempre se fizeram necessários nos meios literário, acadêmico e editorial do Brasil. A despeito da importância da obra de Carolina Maria de Jesus - e de outras tantas escritoras negras dos territórios afroatlânticos - ainda existe uma resistência a essa produção literária, e à sua crítica, dentro desses espaços majoritariamente brancos e masculinos. Entendemos, então, que a publicação de uma Antologia Crítica composta por esse grupo diverso de autoras e autores pode ser uma das contribuições que movimente e enriqueça a fortuna crítica de Carolina de Jesus.
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O POVO: Há obras publicadas e outras ainda em manuscrito. O que Carolina ainda guarda de mistério, contestação e representatividade para seu país?
Organizadoras: O próprio processo de publicação dos livros de Carolina Maria de Jesus envolve respostas a propostas literárias de uma autora fora do padrão, cujo ato de escrever e publicar era e é ainda em si contestatório porque desafia os meios convencionais de publicação, edição e crítica comuns ao campo literário. Muito da obra publicada de Carolina Maria de Jesus sofreu intenso processo de edição. É normal que textos de autoras e autores sejam editados antes da publicação, mas normalmente isso acontece em concordância com a autoria, e esse não foi o caso, pois a autora parece nunca ter sido consultada sobre como gostaria que sua obra, cada livro, fosse apresentado aos leitores, que trechos poderiam ser modificados ou retirados por exemplo. Dentro dessa dinâmica de desrespeito à autora, uma nova proposta de edição da obra já publicada surgiu. Recentemente a editora Companhia das Letras anunciou que publicará grande parte da obra já publicada a partir dos manuscritos da autora. Quer dizer que poderemos ter acesso aos textos de Carolina Maria de Jesus da maneira que ela os escreveu antes de terem sido editados. Pela primeira vez, a decisão editorial de como publicar a autora vem legitimada a partir de uma comissão de pesquisadoras, quase todas negras, entre elas a autora Conceição Evaristo, de modo que leitoras e leitores possam compreender melhor os critérios de publicação. Achamos que isso é um avanço em relação ao tratamento digno da obra de Carolina Maria de Jesus. Mas não envolve toda a obra da autora, apenas parte dela. O Diário de Bitita, por exemplo, não será reeditado. Ao mesmo tempo, apesar de resultar de profunda edição de escritos diversos, reunidos em dois cadernos manuscritos da autora hoje abrigados no Instituto Moreira Sales do Rio de Janeiro, é um livro de memórias muito rico e interessante. É um raro caso de romance memorialístico sobre o tempo pós-abolição pela perspectiva de uma mulher negra. Esse é um caso que mereceria uma nova edição que, assim como a Companhia das Letras propõe, oferecesse aos leitores alguma explicação de como se deu a edição que resultou no livro porque a autora não pensou esse livro dessa maneira, embora o livro tenha de fato resultado numa narrativa bastante rica sobre o Brasil. Tudo isso nos leva a crer que não há apenas uma maneira de publicar e ler a autora, mas defendemos que qualquer publicação seja pensada de maneira que os critérios de edição sejam expostos aos leitores porque a escrita de Carolina de Jesus não é uma escrita tradicional, ela não obedece os padrões da escrita literária, ela exige de certa mameira uma mediação crítica mais atenta. Quanto ao material inédito, há ainda contos e romances a serem publicados. Parte do material inédito, como a que está em Sacramento (MG), sofre hoje com condições inapropriadas e pode se perder em breve. Esse material precisa ser resguardado porque queremos ler o que está inédito, pois Carolina Maria de Jesus é uma voz singular que une um olhar bastante crítico e inusitado sobre as condições sociais do país por meio de uma escrita literária insubmissa. Portanto, há ainda muito mistério sobre o que o material inédito reserva, mas certamente exigirá da crítica literária atenção e disposição para rever nossas ferramentas de análise, porque, em geral, estamos preparados para lidar com textos que obedecem estrutura formal que Carolina Maria de Jesus desafia. Como dissemos no início, a própria publicação de seus textos é em si contestatória e representa, entre outras coisas, a constante necessidade de vozes diversas poderem se expressar por meio da arte. Nossa intenção com esta obra crítica é fomentar essa discussão a partir de alguns pontos de vista acerca da diversidade de interpretações possíveis sobre a obra de Carolina Maria de Jesus.