Regina Dalcastagnè, professora titular livre de Literatura Brasileira da Universidade de Brasília e pesquisadora do CNPq, é uma das vozes principais sobre a produção de literatura contemporânea no Brasil. Dalcastagnè coordena o Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, as Edições Carolina e edita as revistas "Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea" e "Veredas", da Associação Internacional de Lusitanistas. Dentre suas diversas publicações estão os livros "Literatura e Exclusão" (organização com Laeticia Jensen Eble; Zouk, 2017); "Espaços possíveis na literatura brasileira contemporânea" (organização com Luciene Azevedo; Zouk, 2015); "Espaço e gênero na literatura brasileira contemporânea" (organização com Virgínia Maria Vasconcelos Leal; Zouk, 2015) e "Literatura brasileira contemporânea: um território contestado" (Editora da UERJ/Horizonte, 2012); "História em quadrinhos: diante da experiência dos outros" (organização, Horizonte, 2012). Como referência na democratização da escrita literária, esteve presente no lançamento do edital Prêmio Carolina de Jesus e fala sobre esse e outros temas conosco.
O POVO - Pode falar sobre as "Edições Carolinas" e como seu grupo de pesquisa faz ecoar nomes pouco visibilizados?
Regina Dalcastagnè - As Edições Carolina surgiram em 2017, na Universidade de Brasília, a partir da preocupação de um conjunto de pesquisadoras/es do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea com o reduzido espaço para abrigar trabalhos acadêmicos mais aprofundados na nossa área. Sem fins lucrativos, a editora tem como objetivo principal dar visibilidade a estudos que ajudem a refletir sobre o momento atual, seja a partir da literatura, seja a partir de outras práticas culturais. Já lançamos 24 títulos desde então, que estão disponíveis pela Amazon (em formato digital) a um preço simbólico. Neste ano devemos publicar pelo menos mais três títulos.
Como uma das principais inquietações do grupo de pesquisa sempre foi com defesa da pluralidade de vozes na literatura brasileira, a editora não poderia deixar de contemplar a discussão sobre a exclusão de determinados grupos sociais dos espaços de enunciação de discurso e sobre a força estética e política de autoras e autores que conseguiram furar esse bloqueio e nos oferecer a sua perspectiva (literária, artística) sobre o mundo. Entendemos que essas vozes só têm a somar e que elas ampliam as possibilidades de dizer sobre o Brasil e sobre as relações que estabelecemos aqui dentro. Elas acrescentam força à literatura brasileira como um todo. Carolina Maria de Jesus, com a perspectiva dos que "entraram no mundo pela porta dos fundos", como ela mesma dizia, e com sua grande capacidade de elaboração formal, abriu uma frente importante nos anos 1960, e esse espaço hoje é reivindicado por mais e mais escritores.
OP - Sua pesquisa sobre o romance brasileiro contemporâneo mostra um crescimento significativo da publicação de mulheres no país, mas ainda há lacunas, por exemplo, quanto ao gênero das personagens de narrativas. Quais outros desafios atuais?
Regina - A primeira etapa desta pesquisa completa duas décadas neste ano. Apesar do descalabro que foi o governo Bolsonaro, apesar da crise econômica, apesar da pandemia, vimos algumas transformações importantes no cenário literário brasileiro desde então.
Se olharmos com atenção em volta, podemos notar o surgimento e fortalecimento de pequenas editoras pelo Brasil afora, as vendas diretas, o financiamento coletivo de livros, a divulgação por outros meios para além dos tradicionais - jornais e revistas.
Vemos, mais recentemente, a melhoria da qualidade dessas edições, além da eventual legitimação de autoras e autores publicados por pequenas casas editoriais, e mesmo às próprias custas - livros que vêm recebendo reconhecimento, até com prêmios literários importantes no país.
Há ainda a formação de novos leitores e a consequente criação de novos nichos de mercado. Penso que a formação desse novo público leitor passa pela democratização das universidades públicas durante os governos do PT, que duplicaram o número de vagas para estudantes e que instauraram as cotas, para pobres, para negros, para quilombolas, para indígenas.
Essa melhoria na formação acadêmica permite, e mesmo exige, a presença de novos produtores culturais, de escritoras e escritores vindos de outros grupos sociais, até pouco tempo bastante silenciados na sociedade brasileira. Grupos que desejavam se ver representados em nossa literatura e que, cada vez mais, encontram formas próprias de fazer isso. Ganha, é claro, a literatura brasileira como um todo. Afinal, novas perspectivas sociais exigem novas formulações estéticas para dizer de si e do outro.
Assim, apesar de todas as dificuldades - e muito por conta desses movimentos -, acredito que possamos falar em uma retomada da literatura no Brasil. Uma retomada que significa resistência. Resistência às tentativas de silenciamento, resistência à banalização da morte, mas também à banalização da vida de trabalhadores, de mulheres, de negros, de indígenas, da população LGBT, de velhos e crianças, de doentes, de pessoas com deficiências, de imigrantes pobres. Acho que a literatura (e aqui incluo todos os agentes literários: escritores, editores, professores e críticos, bibliotecários et.) fez a sua parte nesses tempos sombrios - o que não significa que a luta esteja próxima de acabar.
OP - Como vê o atual momento de reconstrução política e cultural após os anos do antigo governo? Iniciativas como o Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres, do Ministério da Cultura, são novas esperanças?
Regina - Estamos vivendo um momento de alívio e de esperança. Os últimos anos foram terríveis em todos os aspectos para o país e o que se fez com a área cultural foi abominável. Eliminação de financiamentos para os produtores culturais, perseguição, tentativas de censura de obras, de exposições e de debates públicos, tentativas de criminalização de artistas, escritores, professores, achincalhamentos, deboche.
Entendo essa iniciativa do Prêmio Carolina Maria de Jesus como a sinalização de que a cultura voltará a ser valorizada e entendida da forma mais ampla e democrática possível; que diferentes grupos sociais, tantas vezes silenciados, terão lugar e serão ouvidos. Espero que outros projetos como esse sejam apresentados, e que os demais editais para a cultura contemplem também a literatura, que muitas vezes é deixada de fora.
OP - Neste momento, aqui no Ceará, coletivos de mulheres fomentam a leitura, escrita e publicação de vários gêneros. Há, por outro lado, bastante dificuldade em fazer circular essas produções em outras regiões do país. Que caminhos você vê para uma maior democratização e distribuição desses textos?
Regina - Penso que os caminhos já estão sendo percorridos, esses coletivos estão se multiplicando e se apoiando. Isso é fundamental. O Mulherio das Letras, que começou como uma provocação da escritora Maria Valéria Rezende, também cumpre um papel importante de incentivo e divulgação da escrita de mulheres, mas não esquece a necessidade das editoras, das leitoras, da crítica aos textos e, é claro, de sua distribuição.
Entendo que cabe a nós - professoras/es de literatura, pesquisadoras/es, críticas/os literários, jornalistas vinculadas/os à área, bibliotecárias/os, curadoras/es, gestoras/es públicos - estarmos atentas/os e, sempre que possível, abrir espaço, divulgar, levar adiante essa produção.
Para isso, é preciso entender, antes de mais nada, que a literatura brasileira não é apenas aquela produzida nos grandes centros urbanos do Sudeste, mas que ela nasce e se desenvolve, com diferentes e belos sotaques, com outras preocupações, outras cores e gêneros, outras classes sociais, outras intenções, nos mais distantes lugares deste país. (Lúcio Flávio Gondim /ESPECIAL PARA O POVO)