Há quase 30 anos, donos de uma escola infantil em São Paulo foram acusados de abuso sexual contra crianças de quatro anos. As denúncias foram feitas pelas mães das supostas vítimas. A situação foi levada à imprensa, que repercutiu o caso. A história tomou proporções gigantescas e as pessoas acusadas foram "massacradas" pela opinião pública antes de haver um julgamento oficial.
Erros nas investigações policiais e o sensacionalismo midiático levaram ao "linchamento" público de sete pessoas. No fim, elas eram inocentes, mas os danos já haviam sido estrondosos e quase irreversíveis. Na última sexta-feira, 2, estreou no Canal Brasil a série documental "O Caso Escola Base".
Dirigida por Paulo Henrique Fontenelle e produzida pela Mistika Produções com a Fontenelle Filmes, a série é desenvolvida em quatro episódios. O trabalho apresenta diversos ângulos sobre a situação que ficou marcada na história da justiça brasileira e do jornalismo, sendo discutida em faculdades de comunicação até hoje.
A produção irá ao ar no canal a cada sexta-feira às 22h30min. Todos os capítulos estão disponíveis na modalidade "Globoplay canais" da plataforma de streaming. "O Caso Escola Base" é narrado a partir dos depoimentos dos principais personagens envolvidos e inclui relatos exclusivos que demonstram como a falta de apuração prejudicou as suas vidas.
O que aconteceu em 1994: vítimas e acusados
O conhecido caso envolvendo a Escola Base ocorreu em março de 1994. À época, Icushiro Shimada e sua esposa Maria Aparecida Shimada (proprietários da instituição), a professora Paula Milhim (também proprietária) e o motorista da kombi escolar Maurício Monteiro de Alvarenga (marido de Paula) foram acusados de abuso sexual contra crianças de quatro anos.
As denúncias foram feitas por Lucia Tanoue e Cléa Parente de Carvalho, mães das supostas vítimas. Foi também apontado que os quatro usavam o horário escolar para levar as crianças para motéis, locais onde seriam gravadas e fotografadas nuas. Entretanto, todas essas afirmações eram mentirosas.
Acontece que, após denunciarem à 6ª DP de São Paulo, as mães não ficaram satisfeitas com a demora da investigação e decidiram procurar veículos de imprensa.
O delegado, Edélcio Lemos, também contribuiu para o "alarde" em torno do caso com as informações falsas repassadas. A partir disso, as vidas das reais vítimas - as acusadas - não seriam mais as mesmas.
Afinal, houve ameaças de morte, tortura, depredação, saques ao colégio e as reputações dos envolvidos destruídas. A instituição também foi fechada. Após o inquérito ter sido arquivado por falta de provas, os acusados moveram processos por danos e perdas devido ao caso, mas até hoje envolvidos esperam indenizações.
Em 2007, Maria Aparecida Shimada morreu de câncer. Sete anos depois, seu marido, Icushiro Shimada, faleceu devido a um infarto. Paula não conseguiu mais trabalhar como professora por sua imagem ter sido atrelada erroneamente à de abusadora. Ela também se divorciou de Maurício por causa de dívidas e de como ele ficou emocionalmente devido ao caso.
Abordagem completa
A nova estreia do Canal Brasil reúne depoimentos exclusivos e, para o diretor Paulo Henrique Fontenelle, tornou-se "a história mais completa" sobre o caso Escola Base. Foram entrevistadas pessoas como Paula Milhim (única dona da Escola Base Viva), Mauricio Monteiro de Alvarenga, Ricardo Shimada (filho do casal Shimada), Valmir Salaro (repórter da TV Globo e um dos primeiros a cobrir o caso) e Francisco Bruno Galvão (juiz do caso).
Assim, são apresentados os pontos de vista de mais de 20 pessoas envolvidas. O primeiro episódio narra a história sob a perspectiva dos jornalistas que cobriram a situação. O segundo capítulo aborda os acontecimentos a partir da ótica das pessoas que "viveram o linchamento público".
O diretor aponta como a obra prezou pela "humanidade e empatia" ao realizar a apresentação dos eventos. A série também busca provocar reflexões no espectador. "Acho que levanta a discussão não só sobre a imprensa, mas nosso papel como cidadão na hora de compartilhar notícias sem checar. É um tema que também toca a gente sobre o fenômeno da internet, esse tópico de fake news em que a gente compartilhando uma informação falsa pode condenar a vida de uma pessoa, como ocorreu no caso da Escola Base", afirma Paulo Henrique Fontenelle.
Para o documentário, o realizador recorreu a arquivos das emissoras de televisão que cobriram o episódio (como a TV Cultura, a TV Bandeirantes e a TV Globo), inquéritos policiais, fotos e artigos de jornais, bem como materiais de pesquisa compartilhados por Alex Ribeiro, autor do livro "Caso Escola Base: Os Abusos da Imprensa".
A série conta até com as gravações feitas por uma das vítimas de todas as matérias veiculadas a seu respeito na televisão. "Foi muito importante esse contato com todo mundo, a gente conseguiu juntar o acervo mais completo até agora sobre esse caso", diz.
"Sentimento de injustiça"
Se há uma palavra que norteia o que as vítimas sentem, podemos usar o termo "injustiça". Um dos principais relatos é o de Paula Milhim, que hoje vive em situação precária e até recorre à ajuda financeira de vizinhos.
"Por mais que algumas delas tenham conseguido indenização, o sentimento até hoje é de injustiça. A gente entrevistou o filho dos donos da escola. Por mais que tenha conseguido indenização da justiça, a dor que ele teve de ver o sonho dos pais destruído e o trauma que viveram são coisas que nunca foram recuperadas", conta Paulo Henrique Fontenelle.
O realizador também reflete: "Os relatos das vítimas são todos muito carregados de emoção e sinceridade. A gente vê também os filhos delas,
que, quando eram crianças na época, viam os pais sendo praticamente linchados publicamente. Dá para ver como isso afetou a cabeça delas, que hoje em dia são adultos e carregam essas marcas".
Lições tiradas do caso
Sem dúvidas, o caso Escola Base ficou marcado na história do Brasil. Para que situações dessa magnitude não se repitam, é necessário refletir e extrair lições do que ocorreu - não como um discurso de que "precisava ter acontecido para que houvesse reflexões posteriores", mas como a análise de que foram condutas erradas que fizeram o episódio existir.
A série, então, deseja despertar para a "necessidade de empatia com as pessoas". "A ideia não é condenar os jornalistas, não é condenar a polícia, não é condenar as mães. O objetivo é despertar empatia e ver que as pessoas precisam se responsabilizar pelos seus atos", introduz Paulo Henrique Fontenelle.
O diretor complementa: "Não só os jornalistas, que têm que ter uma noção clara de que uma notícia tem que ser muito bem apurada e que é necessário ouvir os dois lados antes de publicar uma notícia, mas também nós mesmos, como cidadãos, que na hora de recebermos uma informação é sempre importante checar".
Um repórter enfrenta o passado
Na plataforma de streaming Globoplay, está disponível o documentário "Escola Base - Um Repórter Enfrenta o Passado". A obra também fala sobre o episódio relacionado ao escândalo, mas sob a perspectiva do jornalista Valmir Salaro, da TV Globo. Ele foi o primeiro profissional de imprensa a noticiar as acusações sobre os donos da escola.
No filme, Salaro revisita o caso. Ele reencontra as vítimas e outros personagens da história, como Ricardo Shimada, o filho do casal de proprietários da unidade de educação. "Eu cometi um erro no caso da Escola Base ao confiar nas mães que denunciaram o suposto abuso contra os filhos, nos laudos de legistas do IML que apontaram que as crianças tinham sofrido a violência e no delegado que levou a investigação em frente e em mim mesmo", disse ao portal G1 em fevereiro.
"O Caso Escola Base"
O podcast Vida&Arte é destinado a falar sobre temas de cultura. O conteúdo está disponível nas plataformas Spotify, Deezer, iTunes, Google Podcasts e Spreaker. Confira o podcast clicando aqui