Na letra de "São João na Roça", Luiz Gonzaga anuncia a chegada do período junino ao som de forró: "A fogueira tá queimando / Em homenagem a São João / O forró já começou / Vamos gente, rapapé nesse salão". Apesar do forró ser protagonista dos eventos juninos no Nordeste, artistas regionais têm questionado programações de grandes festas de São João que abrem mão do gênero para priorizar outros estilos musicais.
Durante entrevista coletiva em Caruaru, Pernambuco, no ano de 2017, a cantora Elba Ramalho já criticava a presença de artistas sertanejos nas festas juninas do Nordeste. "Eu não tenho nada contra nenhum artista, nada contra nenhum sertanejo. Tem espaço para tudo, no céu cabem para todas as estrelas, ninguém atropela ninguém. Porém, eu não toco na Festa de Barretos, Dominguinhos também não cantava. A festa é deles, é dos sertanejos, e eles têm bem esta coisa: essa área é nossa. Aí quando chega aqui no São João em Campina Grande, não ter o Biliu de Campina, não ter Alcymar Monteiro, eu reclamei bastante, cara, não ter os trios. Quando chega o São João, se você não tem forró... Eu não quero ir a uma festa que não tenha forró", questionou em vídeo que voltou a viralizar em 2023.
Seis anos depois o assunto segue sendo tema de discussão. O cantor e compositor de forró Flávio José teve o show reduzido para que o artista sertanejo Gusttavo Lima tivesse mais tempo de apresentação. O caso aconteceu no dia 3 de junho no São João de Campina Grande, na Paraíba. Enquanto o show de Flávio José durou cerca de 1 hora, Gusttavo Lima permaneceu no palco por 2 horas e 30 minutos. "Infelizmente, são essas coisas que os artistas da música nordestina sofrem", desabafou Flávio em cima do palco.
Leia no O POVO + | Confira mais histórias e opiniões sobre música na coluna Discografia, com Marcos Sampaio
Ocupação sertaneja
No Spotify Brasil, o sertanejo foi o gênero musical mais ouvido no verão 2023. Não é novidade que artistas desse gênero dominam as plataformas de música, mas a força do sertanejo não para por aí. A cada ano tem se tornado mais comum ver a presença de diversos cantores do gênero nas festas juninas, levantando debates sobre essa ocupação sertaneja.
Pesquisador de música cearense e coordenador do Curso de Música da Universidade Federal do Ceará, Pedro Rogério afirma que a presença de artistas do sertanejo é motivada por negócios e não por representação cultural. "As festas juninas foram ganhando notoriedade, tem a força da cultura popular de reunir um grande número de pessoas. Obviamente, a indústria cultural vai fazer uso disso e vai ser financiada pelas marcas industriais, tanto de alimentos como de bebidas. E aí, todos os artistas que não têm esse mesmo financiamento, essa mesma força, vão perder espaço para aqueles que se utilizam da indústria cultural para fazer circular suas obras consumidas", reflete.
"O problema não é ter outros gêneros. O problema é a chegada de outros gêneros, que não estão necessariamente ligados à tradição popular, ou seja, não estão vinculados à força dessa cultura popular, e, sim, ligados a um mercado, a um negócio, um grande negócio", destaca.
O que os artistas pensam?
Durante o período junino, o acordeonista cearense Freitas Filho costuma ver a demanda por apresentações dobrar. Ele viaja para diversos estados, acompanhando Fagner, Elba Ramalho, entre outros cantores. Apesar do movimento na agenda, ele afirma que no passado já foi melhor.
"O forró autêntico vem perdendo espaço já há algum tempo, mas somente aqui no Ceará. Você vê por aí na Paraíba, em Pernambuco, no Rio Grande do Norte, o forró autêntico tem muito espaço durante o ano todo. No mês de junho, volta um pouquinho à tona, mas o espaço continua pequeno para o verdadeiro forró", afirma.
Para o artista, o forró deve ser o protagonista dos festejos de São João. "Eu acho que toda festa, dependendo do seu tamanho e porte, tem que abranger todos os gostos do público. Mas na época junina, eu acho que o que tem que prevalecer são as músicas tradicionais", pontua.
Nascida em Quixadá, Lia Almeida segue carreira no sertanejo e acredita que há espaço para o gênero e o forró nas festas juninas, mas compreende a revoltas dos artistas locais. "A indignação é legítima, porque muitos artistas locais dependem dessas festas para divulgar e fortalecer seu trabalho. Então, a presença maciça de artistas de fora pode gerar uma competição desigual. Mas, se for feita com equilíbrio, a inclusão de artistas de diferentes regiões e renomados, pode atrair um público maior e aumentar a visibilidade para todos, além de gerar um impacto econômico maior", pontua.
"O sertanejo possui conexão muito forte com as raízes rurais e caipiras, celebrando a cultura do campo e a vida no interior. Os temas abordados nas músicas, como amor, relacionamentos, festas e tradições, também estão alinhados com o espírito do São João. Sua sonoridade alegre, letras românticas e dançantes se encaixam perfeitamente no clima junino", destaca.
E a música eletrônica?
Se a presença do sertanejo já causa um certo estranhamento, imagina ter Alok numa programação junina? O DJ é um dos artistas confirmados no São João de Maracanaú. Será que dá pra incluir a música eletrônica no São João?
Os produtores Jorge Quental e Duda Quinderé defendem ser possível valorizar a cultura local sem deixar de lado outros gêneros musicais. Jorge é diretor criativo e co-criador da festa Quartinho e Duda é produtora executiva e sócia da Farol Musical. Eles estão por trás do Arraial do Futuro, que acontece neste sábado, 10, no Complexo Armazém, unindo o forró e a música eletrônica.
"Acreditamos na diversidade musical, onde todos têm espaço", afirma Jorge. "Não somos um evento tradicional, mas respeitamos muito nossa cultura e história", destaca. "O regionalismo nordestino também está presente com forró e suas vertentes", acrescenta Duda.
O Forró Red Light, formado por Geninho Nacanoa e Ramiro Galas, vem de Brasília para tocar no evento. A dupla mescla clássicos do forró, do baião e do xote com a música eletrônica. "No caso da Festa Junina, o forró sem dúvida merece o reconhecimento como mestre de cerimônia. No entanto, o Brasil são muitos Brasis, se tem um quê de sertão, de caipira, de caboclo, cabe em festa junina. Tipo nosso caso, um duo de música eletrônica de pista, mas com os dois pés fincados na cultura regional", destaca Ramiro.
Ponto de Vista: É o que o povo gosta ou é o que ele tem?
Por Marcos Sampaio, jornalista e crítico de música
Nelson Motta, jornalista, diz que cada época tem a música que merece. Se o Brasil da ditadura teve Chico Buarque e Elis Regina, o da redemocratização e eleição de Collor de Mello teve Zezé di Camargo e Luciano e Leandro e Leonardo. Qual dos dois brasis é melhor? Antes de responder, é preciso entender o que houve nesse período.
No fim dos anos 1990, o modelo de negócio das gravadoras mudou. Músicos foram demitidos para dar lugar aos estrategistas de mercado. Quando uma fórmula dava certo, a ideia é repeti-la à exaustão. O mercado sertanejo é assim: uma produção gigantesca de produtos iguais. Mudam o nome da dupla, mas não muda forma nem conteúdo.
O mercado do streaming ajuda, uma vez que essa cena vive de singles. Se um não deu o retorno previsto, lança-se outro e esquece o anterior. O investimento em propaganda também cria ídolos da noite para o dia, mesmo que não haja muita diferença entre eles. Não há pretensões artísticas e ousadia, apenas a auto-reprodução e o retorno rápido.
Com uma produção tão grande e onipresente em rádio, TV e internet, é natural que esse sertanejo vá ocupando muitos palcos. A pluralidade não é uma regra no mercado musical brasileiro. Mas, voltando à pergunta inicial, qual dos dois brasis é o melhor? Por mim, um que ainda pode vir a existir em que entes públicos valorizam a cultura, a diversidade e o pensamento, e incentivam o povo a refletir sobre o que quer ver, ler e ouvir. Seja rock, samba ou erudito. Ou sertanejo, por que não?
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