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Acervo do Museu do Ceará deve migrar para anexo no segundo semestre
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Acervo do Museu do Ceará deve migrar para anexo no segundo semestre

Enquanto atravessa mais uma reforma estrutural, Museu do Ceará também passa por reformulação conceitual
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Acervo do Museu do Ceará (Foto: Felipe Abud/divulgação)
Foto: Felipe Abud/divulgação Acervo do Museu do Ceará

O tempo pelo qual corre a reforma pode trazer agravantes que tangenciam as questões físicas: com o equipamento fechado por anos, muitas pessoas de gerações mais novas sequer sabem onde o Museu do Ceará está situado ou têm dimensão da trajetória da instituição, que se estende por mais de 90 anos. O contexto do surgimento da iniciativa remete a um período no qual se buscava fortalecer instrumentos de identidade nacional. "No caso dos museus históricos, eles tiveram, em muitos casos, o Museu Paulista e o Museu Histórico Nacional como 'modelos' a partir de 1922, ano do centenário da independência do Brasil", rememora a historiadora Cristina Holanda, gestora do Museu do Ceará entre 2008 e 2013 e atual diretora do Museu Ferroviário do Ceará.

O equipamento tratado nesta matéria foi criado por decreto em 1932 e abriu as portas em 1933 como Museu Histórico do Ceará (MHC). As peças, majoritariamente adquiridas por compras e doações particulares e de instituições públicas, ocupavam duas salas do recém-criado Arquivo Público do Estado. A entidade foi incorporada à Secult - CE em 1967 e, em 1971, o professor Osmírio Barreto tomou a frente da superintendência. "Três gestões foram bem estudadas em dissertações e teses: Eusébio de Sousa, Raimundo Girão e Osmírio Barreto. Cada um com suas particularidades, tiveram em comum o uso de práticas expositivas que nos remetem à tradição dos antiquários; discursos em prol do nacionalismo; a folclorização da cultura popular; e a compreensão do Museu como instituição educativa voltada para a formação de patriotas", aponta.

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A organização embarca em mais um processo de renovação a partir de 1990, quando é transferido para o Palacete Senador Alencar e recebe o título de Museu do Ceará. A nova nomeação pretendia integrar distintos preceitos à instituição, como diversidade tipológica do acervo e formação interdisciplinar, com a presença de historiadores, antropólogos, museólogos, arquitetos, restauradores, arqueólogos e paleontólogos na equipa técnica. "Considerando os novos debates acerca da estrutura e função social dos museus, em especial os de História, percebem-se mudanças acentuadas na configuração do Museu do Ceará, sobretudo com a criação de exposições de longa duração: "Momento Ceará Terra da Luz ou Ceará Moleque: Que História é Essa? (1998-2008)"; e a fundação de um núcleo educativo fundamentada em premissas da História Social e do legado de Paulo Freire, com o desenvolvimento da metodologia do "objeto gerador" nas mediações. Foi o tempo de organização de sua reserva técnica; da Associação de Amigos (única sobrevivente entre tantas outras do mesmo período), inúmeros seminários, cursos, palestras, oficinas, saraus, teatro", direciona Cristina.

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Esta sucessão de diretrizes foram decisivas para que a instituição firmasse o compromisso de conscientização social por meio da educação, com projeção de múltiplos projetos educacionais firmada por mandatos como o do professor Régis Lopes, que aconteceu entre 2000 e 2008.

Processos de musealização

Professora de Teoria e História da Arte da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, Carolina Ruoso começou a integrar o Laboratório de Museologia do Museu do Ceará, à época coordenado por Régis Lopes.

"O Régis trazia todo o discurso do Bezerra de Menezes, da historiografia interessada na cultura material, do colecionismo, das exposições", retoma. A nova fase sistematizada pelo professor utilizou como base os ensinamentos do educador Paulo Freire, instigando a criação de um espaço propício para debates e conhecimento crítico. "Eu afirmo com toda a certeza que foi ali, no Laboratório de Museologia do Museu do Ceará, que nasceram as metodologias participativas do inventário participativo e da curadoria participativa".

A professora afirma que o caminho foi importante para processos de musealização com gestão participativa e justifica o nascimento de projetos dessa natureza a partir da aliança entre instituições culturais, museus e universidades. "(O diálogo) Precisa ser permanente, alimentado, construído para que os museus possam trazer essa dimensão experimental e atualizada. Também é necessário a presença da pesquisa contemporânea atualizada junto com o próprio museu e os movimentos sociais", argumenta.

A união desta gama de organizações foram tão determinantes na trajetória de Carolina que o Museu do Ceará tornou-se seu objeto de estudo na tese "Museu Histórico e Antropológico do Ceará (1971 - 1990): Uma história do trabalho com linguagem poética das coisas: objetos, diálogos e sonhos nos jogos de uma arena política" (2008)", posteriormente publicada em formato de livro pela Coleção Outras Histórias.

"O Museu do Ceará tem uma importância estrutural para as políticas públicas, está alinhado ao discurso da Secretaria da Cultura e do governo do Estado. Tem uma força institucional de orientação de uma política de museus no estado do Ceará e de uma visão histórica que o próprio Ceará tem de si", conceitua. Sendo assim, Carolina reforça que a instituição deveria "irradiar reverberações e ressonâncias" que fomentem a construção de políticas de museus em Fortaleza e demais municípios cearenses. "O que faz deste museu um grande museu de impacto local, nacional ou internacional não é o tamanho do seu prédio, da sua coleção, mas a capacidade que essa instituição tem de articular os trabalhos da memória e da musealização com o território e os agentes culturais. Quanto mais movimentos de agentes históricos nos territórios, quanto mais eu fortaleço os pontos de memórias nos territórios - entendendo as singularidades -, mais eu produzo diálogo", exemplifica.

A acadêmica realça que estamos vivendo um "momento de construção de justiça epistêmica", no qual os processos históricos "dizem muito" sobre a articulação da vida cotidiana e a compreensão de sujeitos que atuam e transformam o mundo. Por isso, é "fundamental" um olhar para a experiência histórica do Estado. "O museu estar fechado é uma orelha fechada, um lugar de escuta trancado. Precisamos desse museu aberto, com processos de escuta ativos também. Que a gente possa fazer deste um lugar que apresente múltiplas vozes, que é um fundamental. A gente precisa construir justiça social e cultural".

 

Repensar o Museu

Há 10 anos, a atuação plena do equipamento já estava prejudicada. Matéria do O POVO de 15 de setembro de 2013 mostra que o local pedia "socorro". Foram registradas janelas sujas, teto com infiltrações, problemas na central de ar-condicionado e mofo, problemas que colocavam em risco a durabilidade do acervo e perduraram até 2019. Para que o equipamento continue ativo nos próximos anos, é necessário direcionar atenção para a captação de recursos, promoção de projetos e preservação dos materiais.

A vigente reforma alcança, também, a dimensão conceitual. A diretora da instituição, Raquel Caminha, aponta os dois principais desafios desde quando tomou o posto no ano de 2021: realizar a transferência do acervo e setor técnico para um novo espaço, processo que começou a ser realizado em setembro de 2022, e reconceituar o Museu do Ceará. "Nessa janela entre 2022 e 2023, o museu completa 90 anos de existência, é uma instituição de referência também. Reconceituar o Museu é repensar ele a partir de novas demandas, que estão mais emergentes na atualidade, especialmente aquelas ligadas à representatividade, diversidade de grupos sociais que sempre são vistos de maneira muito limitada dentro do acervo ou que não se veem representados ou convidados a dialogar com a instituição", considera.

Ela conta que o espaço recebeu visitas recentes do setor de modernização dos equipamentos da Secult - CE, tanto no Palacete, quanto no Anexo, para elaborar equipamentos audiovisuais modernos para serem adquiridos. "O Museu tem trabalhado ainda com atendimento ao público, principalmente aos pesquisadores, e tem realizado algumas programações on-line e em parceria. Estamos tentando manter uma atividade ainda para o público externo, mas estamos nos concentrando para organizar o acervo a partir de novas prerrogativas da museologia, é um trabalho minucioso".

Museu do Ceará no Jornal O POVO

O atual contexto do País, de acordo com a historiadora, é estimulador, após o período de pandemia que afetou toda a cadeia cultural e o desestímulo à cultura presente no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). "Com o retorno de um governo que tem a democracia como seu principal valor com muitos bons olhos. O retorno do Ministério da Cultura (Minc) e essas novas políticas que estão sendo divulgadas, nós vemos como uma grande oportunidade para a retomada de financiamentos a instituições museológicas. A Secult recebeu recentemente a presidência do Iphan, que dialogou conosco e vem pensando novas estratégias", conta.

Todo o planejamento, portanto, está sendo calculado pela atual gestão de expansão do Museu. Em primeiro ponto, com a abertura do Anexo Bode Ioiô (prevista para o segundo semestre de 2023) para a sociedade civil, o diálogo e parceria com os demais equipamentos culturais inaugurados desde 2019 - como a Estação das Artes e a Pinacoteca do Ceará -, e o aumento do acervo. Caso assim seja, a premissa - e esperança - é de que o Museu do Ceará possa voltar a ser espaço de fruição e expandir a potência cultural do Estado.

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