Nascido na cidade cearense da fé, Canindé, Daniel Lessa Ferreira, 15, vive cada dia como um milagre. Na luta contra um câncer nos ossos, o paciente do Hospital Infantil Albert Sabin (Hias) realiza o sonho de levar sua arte ao público. Com 24 obras expostas em um mostra na Universidade de Fortaleza (Unifor), o artista apresenta um pedaço de sua vida.
O menino "sereno e maduro", assim definido pelo pai, busca expressar em seus desenhos a vida que tem levado, como se cada traço fosse o remédio para dores difíceis de curar.
"Eu aprendi, graças ao desenho, que tudo na vida é um processo. Você não vai conseguir nada rápido, você tem de lutar por algo, de conseguir aquilo aos poucos, claro, com ajuda de várias pessoas. Mas você tem de focar, tem de seguir. Eu venho produzindo meus desenhos e criando, tanto sobre minha realidade quanto outras coisas", reflete o jovem.
O pai e a mãe de Daniel, amantes de cada segundo da vida do artista, defendem que a arte aflorou desde a infância na vida do menino. "Ele sempre esteve ligado às artes. Quando a gente ia ao mercantil, ele nunca queria brinquedo, sempre pedia uma caixa de lápis de giz de cera. Sempre foi de criar, ler, cantar... Ele já leu todos os livros de Harry Potter, já cantou na coroação de Nossa Senhora no Santuário de Canindé. Nas telas, ele começou a desenhar sobre o que vivia e os artistas que ele gostava", lembra o pai Wellington Tavares.
Fã de artistas internacionais, ativo nas redes sociais, ligado nos acontecimentos do mundo pop e sempre em contato com amigos, Daniel nunca deixou que a doença que enfrenta definisse sua personalidade.
Segundo as amigas Kamille Paulino, 15, e, Emilly Freitas, 14, o "humor ácido" é marca registrada da personalidade do amigo. "Ele sempre teve um humor mais ácido. Apesar de tudo, ele continua o mesmo. Sempre falando de cultura pop, Duda Beat, Marina Sena. Mas dá para perceber um amadurecimento muito grande com tudo que ele vem passando", relatam.
Fortes incômodos na perna e uma queda de bicicleta acionaram o alarme para uma visita ao médico. Com alguns exames e opiniões de especialistas, o diagnóstico surgiu em fevereiro de 2022. Daniel carregava consigo uma osteosarcoma, que evoluiria para um tumor no fêmur e, meses depois, apesar do tratamento, à amputação da perna direita.
As veias artísticas, que constantemente recebiam injeções de ânimo e inspiração de um mundo rotineiro, passaram a dividir espaço com as doses de medicações e seus efeitos colaterais.
"Ele recebeu a notícia (da intervenção cirúrgica) sem chorar, sem agressividade, sem raiva ou tristeza. Em um belo dia ele desenhou, esboçou todos os sentimentos em um quadro, ou seja, o reflexo da conversa nesse desenho", relatou a médica oncologista, Bruna Cunha, responsável pelo tratamento.
O quadro desenhado por Daniel retrata uma perna rodeada por uma nuvem colorida onde o tumor se encontrava. O desenho parece ter som, textura e memória. Segundo Daniel, a obra foi feita enquanto escutava o pai e a mãe conversarem sobre o fato que mudaria sua vida. "Eu só quis expressar o que estava sentindo na hora", comenta o artista.
É preciso olhar para o mundo com outros olhos, é o que defende a mãe de Daniel, Josiane Lessa. Para ela, até a gratidão pelas experiências difíceis precisa ser exercida. "Quando você entra naquele hospital e vê tantas mães em situações ainda piores que a sua, a visão muda. Aprende a dar valor às coisas que realmente importam", conta Josiane.
A esperança de dias melhores também é viva na família. A possibilidade de uma nova cirurgia que melhore a qualidade de vida do menino tem animado Josiane. O pai tem buscado realizar mais um sonho do filho, levá-lo para presenciar um jogo na Arena Castelão. Uma caravana com parentes e amigos busca aplaudir as obras do menino expostas em Fortaleza.
Como na canção de Duda Beat, sua cantora favorita, "todo carinho do mundo" para Daniel é pouco. Em uma lição à reportagem, Daniel diz muito: "Continue, muita gente não tem oportunidade de continuar".
Cores e referências
Com giz de cera e canetas marca-texto, as obras de Daniel Lessa apresentam rostos e formas do imaginário singular do artista. Em compilado de 24 quadros, os formatos e as expressões chamam a atenção. Fã da cultura pop e com Lady Gaga como uma de suas ídolas, os desenhos de Daniel vibram com cores fortes e neons que, segundo o autor, exalam uma "energia futurista".
"Eu começo buscando referência, um artista tem de ter referências. Tudo se inspira em algo, principalmente quando é para desenhar rosto, tenho de ter a referência para saber o ângulo e tudo", detalha o artista.
"Eu queria que as pessoas vissem do jeito delas, queria ver as várias interpretações, o que uma arte minha podia gerar", afirma Daniel.
O sonho de expor as artes desenvolvidas no quarto de casa surge após a médica oncologista Bruna Cunha ver alguns desenhos do paciente. "Quando ela (Josiane, mãe do artista) me enviou eu não acreditei que ele tinha feito os desenhos sozinho sem copiar de nada. Compartilhei com Tarcísio Matos (voluntário da Associação Peter Pan) e ele comentou sobre a ideia da exposição", explica Bruna.
"O Programa Realizando Sonhos faz parte de um dos dezesseis programas sociais que a Associação Peter Pan realiza dentro de um dos pilares que é a humanização do tratamento. Durante as consultas, conversando com a equipe multidisciplinar, o Daniel falou desse interesse dele. Daí entramos em contato com a Unifor e foi viabilizada a mostra", detalha Sandra Salgado, gerente de Atividades Sociais do Peter Pan.
O sonho que transpassou a realidade acendeu Daniel. Agora, o menino tem sido luz por onde passa. "O Daniel é outra criança, cheio de perspectiva. Ele é luz dentro das unidades, as enfermeiras comentam. Eu não estou usando mais remédio de dor nele, eu não precisei de uma quimioterapia mais pesada. O tratamento melhorou muito", comemora a médica.
No dia de lançamento da exposição, na última quinta-feira, 15, Daniel recebia os apreciadores de suas obras com brilho nos olhos e fazia questão de explicar detalhes dos trabalhos.
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