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"Meu Corpo, Minha Embalagem, Todo Gasto na Viagem": disco lançado há 50 anos contempla gerações
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"Meu Corpo, Minha Embalagem, Todo Gasto na Viagem": disco lançado há 50 anos contempla gerações

"Meu Corpo, Minha Embalagem, Todo Gasto na Viagem" completa 50 anos. Artistas e pesquisadores refletem sobre desdobramentos do disco
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Rodger Rogério, Téti e Ednardo (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Rodger Rogério, Téti e Ednardo

A premissa do movimento rege o álbum "Meu Corpo, Minha Embalagem, Todo Gasto na Viagem" (1973). O ponto de partida são composições harmonizadas nas vozes dos cantores Ednardo, Rodger Rogério e Téti - creditada como Tétty à época -, registradas pela primeira vez em disco de vinil. O título da obra, retirado de poema do publicitário e agitador cultural Augusto Pontes, é ilustrado em cor vermelha que contrasta com a fotografia de renda branca exposta na capa dupla. Na parte interna do produto fonográfico, é exibido o subtítulo "Pessoal do Ceará", nomenclatura pela qual o grupo de jovens artistas e intelectuais cearenses expoentes das décadas de 1960 e 1970 seriam associados nos futuros passos.

O termo foi sugerido pelo produtor Walter Silva, responsável pela direção da produção do disco, após acompanhar o programa televisivo "Proposta". Algumas destas personalidades, então iniciando as próprias carreiras, participavam da atração e escreviam canções para cada convidado. "Adotamos a 'cidadania musical cearense' de hoje", justifica Silva em texto compartilhado no LP. O material ainda menciona que é "impossível" pontuar quando e como estas figuras do Estado começaram a se agrupar, talvez entre os shows do Instituto de Física da Universidade Federal do Ceará (UFC) e as noites boêmias no tradicional Bar do Anísio.

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Certo é que ali, em meio às represas da ditadura militar, houve uma "avalanche de poesia" e fruição cultural a partir da produção dos três intérpretes de "Meu Corpo, Minha Embalagem, Todo Gasto na Viagem" em conjunto com os trabalhos de Amelinha, Belchior, Raimundo Fagner, Fausto Nilo, Augusto Pontes, Ricardo Bezerra, Tânia Araújo, Dedé Evangelista, Francis Vale, Cláudio Pereira, Aderbal Freire Filho, Ieda Estergilda, Petrúcio Maia, Manassés, Edson Távora, Jorge Mello, Brandão, Mércia Pinto e Wilson Cirino, para citar alguns que estiveram por trás de tantas criações.

Como indica a música de abertura do disco, "Inganzeiras", a turma estava pronta para enveredar pela sorte da estrada e ver sonhos "varando cancelas". Muitos migraram para Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília em busca do sucesso e exportaram os produtos culturais do Estado. O referido lançamento de 1973, gravado em 1972 com regência do maestro Hareton Salvanini, trouxe uma mistura de sonoridades que ia desde referências de Lauro Maia aos Beatles. Ao longo de faixas como "Terral" e "Cavalo Ferro", é notório que as músicas deveriam pertencer ao álbum.

Quem vocaliza esta afirmação é o físico e compositor Dedé Evangelista, responsável pelas letras de "Curta Metragem" e "Falando da Vida", em entrevista ao Vida&Arte. "Curta Metragem", relata ele, é melancólica devido ao contexto político. Já "Falando da Vida" foi criada após a morte do arquiteto Braguinha e de sua mulher em um acidente de carro. Motivado pela perda de jovens recém-casados e parte da família, Dedé escreve: "No meio do dia não venha tentar quebrar meu encanto". Além de temas que perpassam vida e morte, "Meu Corpo, Minha Embalagem, Todo Gasto na Viagem" retrata o desponte de uma geração, como pontua texto de Augusto Pontes: "comemos muito a cultura nacional, sempre querendo que a 'comida' fosse melhor. Continuamos nosso banquete, mas começamos a botar os pratos na mesa, para distribuir o nosso angu…."

"Resgate das raízes culturais"

"Gravado em 1972 pela Continental, com arranjos e regência de Salvanini, e lançado em 1973 com producão de Walter Silva, 'Meu Corpo, Minha Embalagem, Todo Gasto na Viagem' é um álbum antológico por sua importância no cenário musical brasileiro dos anos 70. Nas vozes de Ednardo, Rodger Rogério e Téti foram registradas canções que brotaram do intenso processo criativo característico da geração 50/60 que se instalou em plagas cearenses e por toda a sociedade brasileira que, então, vivia sob o jugo do regime militar. Constituiu-se como um marco histórico do registro dos trabalhos autorais dos artistas cearenses no cenário da indústria cultural musical brasileira, cuja característica básica era a afirmação de nossa identidade cultural. Através de uma entrevista realizada pelo radialista Júlio Lerner e por um programa televisivo, "Proposta", mediado por Moacyr do Val, foi mostrado ao público de São Paulo um novo grupo de artistas-compositores - o Pessoal do Ceará - com novas propostas estético-musicais. O álbum continua a influenciar os novos compositores que se inserem no processo evolutivo da música cearense. Rememorá-lo faz parte da tarefa artística de resgate de nossas raízes culturais e musical".

Professora titular da Universidade Estadual do Ceará (Uece), a socióloga Mary Pimentel foi uma das primeiras pesquisadoras sobre o Pessoal do Ceará

 

Nova forma de estar no mundo"

"A minha pesquisa demonstrou que o Pessoal do Ceará traduz uma geração que viveu o mesmo contexto social e político, dos movimentos estudantis, das estéticas. 'Co-incidentemente' vários artistas se deslocaram do Estado no período em que Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil estavam exilados, então houve um pequeno vácuo na produção local brasileira e abriu-se espaço. O produtor Walter Silva viu nesses artistas que estavam chegando um jeito de cantar que tinha uma certa unidade estética no comportamento, nas letras, no jeito de falar. Um jeito de compor, melodias, harmonias e temas que têm como pano de fundo a liberdade. Não podia ser diferente porque estávamos na ditadura. Ao mesmo tempo que eles trazem uma referência da Bossa Nova, eles trazem os cearenses que os antecederam: Lauro Maia, Luiz Assunção, Aila Maria; sem falar dos grandes: Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro. Mas eles também estavam atendendo um anseio, então já começaram a ouvir Beatles, Pixinguinha. Se forma um novo campo musical que antes não existia. Esse disco é fruto desse caldo, desse contexto de uma juventude letrada, contra o golpe militar, obviamente, e que traz uma nova forma de ser e de estar no mundo".

Coordenador do curso de Música da Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisador musical, Pedro Rogério é filho de Téti e Rodger Rogério. Ele destaca que nasceu em 1972, ano de gravação do disco

 

"Principal disco do cancioneiro popular cearense"

"Na minha concepção, é o principal disco do cancioneiro popular cearense, pois lançou os cearenses e o movimento Pessoal do Ceará para o Brasil todo. E assim ficaram conhecidos Ednardo, Rodger Rogério, Téti e outras pessoas que estavam em outras gravadoras e não puderam estar presentes no disco, que estão através de composições e daqueles momentos da década de 1970. Inclusive, 'Terral', o hino cearense está nesse disco. É muito importante reverenciá-lo porque marca os cinquenta anos da carreira de muitos artistas aqui do nosso Estado. Ednardo, Rodger e Téti conseguem levar essa identidade do disco e perpetuar por gerações. Celebrar cinco décadas do "Meu Corpo, Minha Embalagem, Todo Gasto na Viagem" é celebrar a música cearense e do Pessoal do Ceará, mas, principalmente, a identidade de um povo plural. São cinquenta anos da nossa história. Se observar, o boom do turismo cearense na década de 1970 não foi à toa, quando as dunas brancas foram propagadas pela música. Tem toda interferência no movimento do nosso Estado"

O jornalista Luã Diógenes desenvolve, desde a Universidade, pesquisa sobre o Pessoal do Ceará e a música do Estado. No último dia 17, o comunicador lançou o livro "Falando da Vida: as canções que teimam resistindo", obra que reúne crônicas sobre os referidos assuntos.

 

"Discografia de quem gosta de boa música"

"O disco tem, para mim, a melhor música que o Ednardo fez até hoje, "Ingazeiras". É incrível a introdução do violão, os metais que têm no meio. "Terral" eu considero o hino do Ceará, principalmente de Fortaleza. O Rodger também tem momentos incríveis com seu parceiro Dedé (Evangelista) e também com Augusto (Pontes). Eu destaco aqui "Curta-Metragem", uma das melhores baladas do Ceará, cantada lindamente pela Téti. "Falando da Vida" é um hino, quase todo mundo está cantando essa música de novo, a Nayra Costa, o Daniel Groove, uma turma mais jovem. Vale ressaltar que boa parte da sonoridade do disco é culpa do grande maestro e produtor Hareton Salvanini. Tinha muita influência do Tropicalismo, do Rogério Duprá, usando até sintetizadores também. Eles colocaram "Dono Dos Teus Olhos", que é do Humberto Teixeira, cantada lindamente pela Téti. Esse disco marca bem a chegada dos cearenses, como pós-tropicalistas, pós aquela onda do "iê-iê-iê" com um pouco do rock que estava surgindo com "Os Mutantes". O Rodger eu sei que tem muita influência de Bossa Nova, o Ednardo já mais erudito, é uma salada musical muito interessante. Que pena que, nessa formação, só três deles gravaram. E só em "Cavalo Ferro" que os três cantam juntos. É uma ótima estreia e tem que estar na discografia de quem gosta de boa música, é atemporal".

O guitarrista, compositor, produtor e diretor musical Mimi Rocha soma performances de sucessos dos artistas na carreira.

Escute os depoimentos completos de Luã Diógenes, Pedro Rogério e Mimi Rocha:

 

"Necessidade de ganhar a estrada"

"Esse disco é emblemático. Tem uma importância histórica gigantesca, tanto do ponto de vista estético, pós-tropicalista, e já demonstrando o que seria uma sonoridade genuinamente cearense; quanto do ponto de vista mercadológico, consolidando a entrada do Pessoal do Ceará, inclusive como "marca" na amplitude do cenário musical brasileiro. A frase de Augusto Pontes, que é subtítulo do álbum, é absolutamente genial na sua síntese da necessidade de ganhar a estrada, de desbravar outros territórios. É bonito também porque já pressupõe um coletivo, no caso, as vozes de Ednardo Rodger e Teti. Eu tive a alegria de escrever sobre esse disco no livro “1973, o ano que revolucionou a MPB”, organizado por Célio Albuquerque. Mas no momento em que chegamos aos seus 50 anos, e mostra-se atemporal, obra-prima do cancioneiro e discografia cearenses. É muito interessante e significativo mergulhar nesse trabalho, e descobrir muitas nuances, inclusive como um fio que nos trouxe até aqui".

A jornalista e cantora Mona Gadelha escreveu sobre o disco na coletânea "1973: O Ano Que Reinventou a MPB" (2023), organizada pelo jornalista e pesquisador Célio Albuquerque

 

Entre amigos

A capa da primeira edição do disco, de 1973, foi lançada pela Continental com fotografia de rendas, creditada para Sérgio Segall e Kimihiko Kato. Depois, a gravadora lançou um compacto duplo com a mesma capa do LP, mas com o título “Pessoal do Ceará” na frente. Com o sucesso nacional de Ednardo, o trabalho passou por mais uma reformulação e o nome foi alterado para “Ednardo e o Pessoal do Ceará” (1986) com as fotos divulgadas na parte interna do primeiro LP. Já em 1994, mais uma versão surgiu e o disco foi nomeado como “Ingazeiras”.

O disco

 Lado A

1 - Ingazeiras
2 - Terral
3 - Cavalo Ferro
4 - Curta-metragem
5 - Falando da Vida
6 - Dono dos Teus Olhos

Lado B

1 - Palmas Para Dar Ibope
2 - Beira Mar
3 - Susto
4 - A Mala

Créditos: Rosário Domenico de Carla (piccolo), Demétrio Lima (flauta e sax-alto), Isidoro Longano (flauta, sax, tenor), Francesco Pezzela (oboé-trompa), Elias Sion Jorge Izquierdo , Caetano Finelli, Mário Tomassoni, Dorisa Soares, Jorge Salim, Alfredo Lattaro, Germano Wajnrot, Antonio Ferrer e Joel Tavares (violinos), Michel Verebes e Yoshitame Fukuda (violas), Flávio Russo e Ézio Pino (cello), Heraldo do Monte (viola e guitarra), Sebastião Gilberto e Geraldo Aurieni, (pistão), Severino da Silva, Renato Cauchioli , Arlindo Bonadio e Iran Fortuna (trombone), Gabriel Bahlis (baixo), Rubens Soares (trumbadora e ritmos), Mario Oliveira (ritmo), Antonio de Almeida (bateria), Ricardo Carvalho (copista), Aloísio de Paula Jr (técnico sintetizador) e José Hareton Salvanini (regência, arranjos, piano e sintetizador).

 

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