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"A liberdade sexual vem por último em relação aos outros tipos de discriminação"
Vida & Arte

"A liberdade sexual vem por último em relação aos outros tipos de discriminação"

Professor, escritor e ativista Renan Quinalha fala ao Vida&Arte sobre grupo de trabalho do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania voltado à comunidade LGBTI
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Renan Quinalha é professor, ativista e presidente do grupo de trabalho do Ministério dos Direitos Humanos voltado à memória, verdade e reparação da comunidade LGBTI+ no Brasil (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Renan Quinalha é professor, ativista e presidente do grupo de trabalho do Ministério dos Direitos Humanos voltado à memória, verdade e reparação da comunidade LGBTI+ no Brasil

Com livros que traçam o passado, o presente e miram futuros dos corpos dissidentes de gênero e sexo, o professor, escritor e ativista Renan Quinalha vem se consagrando como uma figura importante na pesquisa sobre a população LGBTI  — como denomina — no Brasil. Ele acaba de ser escolhido pelo ministro Silvio Almeida para uma comissão de função inédita: compor e presidir grupo de trabalho do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania com o objetivo de efetivar o direito à memória, à verdade e à reparação da comunidade LGBTI no Brasil. Pesquisador, artista e colunista do Vida&Arte, Lúcio Flávio Gondim entrevista Renan sobre nomenclaturas, papeis institucionais e lugar de fala.

O POVO – Há muito, grande parte da população com sexualidade ou identidade desviante não consegue explicar todas as letras da sempre crescente sigla "LGBTQIAPN". Toda essa nomeação, sabemos, tem uma dimensão de reconhecimento humanizatório que é crucial. Por outro lado, há uma cisão e uma dificuldade de entendimento alarmantes. Como você — cuja produção intelectual e política busca ser didática — compreende essa questão?
Renan Quinalha – Esse ponto é fundamental para quem tem trabalhado essa temática da diversidade que é: como a gente consegue elaborar um repertório que confira visibilidade e reconhecimento, para cada uma das identidades. Tenho produzido uma série de estudos e de elaborações fazendo trabalhos no sentido mais formal, universitário mesmo, de pesquisa. Mas, além disso, eu sempre busco participar do debate público de maneira mais ampla: falar de modo mais claro; tentar ampliar os públicos; falar para públicos que sejam fora dessa bolha em que estou. É preciso uma preocupação constante para que a gente consiga ter uma linguagem mais inclusiva, mais representativa e, ao mesmo tempo, mais clara, mais objetiva e de maior alcance na sociedade. A sigla que eu tenho utilizado inclusive por isso é LGBTI, que é uma sigla mais concisa e que permite comunicar a diversidade interna. É uma sigla que expressa também o acúmulo do movimento sem prejuízo de ir ampliando.

OP – Em obras como "Movimento LGBTI : uma breve história do século XIX aos nossos dias" (Autêntica, 2022) e em "Contra a moral e os bons costumes: a ditadura e a repressão à comunidade LGBT" (Companhia das Letras, 2021), você nos mergulha na história para que entendamos como até aqui sobrevivemos e, assim, sabermos a importância da continuidade da luta sob risco de voltarmos a um passado que parece sempre presente. Porém, ao contrário do que ocorre nos movimentos negro e feminista, nossos teóricos e até ficcionistas não têm a mesma capilaridade dentro da comunidade. A que você atribui esse pouco diálogo com a história e com o pensamento sistematizado entre alguns corpos transgressores?
Renan – A gente tem um certo atraso histórico de organização política e de elaboração da comunidade LGBTI, se a gente comparar com o movimento negro e feminista, que são movimentos e elaborações teóricas que vieram antes. O entendimento sobre orientação sexual e identidade de gênero é muito recente, é do fim do século 19, diferente da ideia de raça que é muito anterior ou mesmo de gênero/sexo. A luta das mulheres já tem ondas antes mesmo do 19. Do movimento LGBTI, não. A gente tem evidentemente pessoas que estavam vivendo experiências de gênero e sexualidade em fronteiras, questionando a heteronormatividade e a cisnormatividade, mas a gente não tinha ainda essas nomeações tão claras que vão aparecer com os discursos médicos e jurídicos do fim do século 19. Eles vão dar nomes para estigmatizar, mas vão permitir também uma identificação pessoal e política, que vai criar uma comunidade e um movimento organizado. Portanto, a gente tem pouco mais de um século de organização política efetiva dessa comunidade e ainda falta bastante nesse movimento na incorporação da democracia moderna. A liberdade sexual vem por último em relação aos outros tipos de discriminação. Isso tem mudado muito significativamente. É incrível ver como cresce a produção teórica e a ficcional envolvendo diversidade sexual e de gênero, na vida das pessoas, na televisão e na mídia.

O POVO – De acordo com levantamento recém-divulgado pelo Observatório de Mortes e Violências, você fala com o jornal de um estado número um nos crimes contra a população LGBTQIAPN no Brasil. Consegue sintetizar o porquê de, apesar de toda visibilidade (temos a maior Parada do Orgulho do mundo) e até de alguma legislação, seguirmos sendo o país que mais mata pessoas que fogem a um padrão de corpo e sexualidade heteronormativo? O que a Justiça, em diferentes setores públicos, ainda precisa e deve fazer visando à garantia de Direitos Humanos?
Renan – Esse desafio da violência ainda é muito presente e talvez seja o principal do Brasil. A gente é uma sociedade muito estratificada e violenta contra grupos vulnerabilizados. Temos um desafio muito grande: formular políticas públicas para prevenir a violência. Antes de tudo, pensar iniciativas no campo da cultura e da educação que promovam a diversidade e os direitos humanos desde a escola para que possamos sensibilizar as pessoas. E, de outro lado, além da prevenção – algo a ser feito antes de a violência acontecer – a gente precisa ter medidas de justiça e reparação. Não podemos ter um cenário de impunidade como o que nós temos hoje. É preciso ter um treinamento de policiais, de membros da Justiça, da Defensoria Pública, do Ministério Público, da Magistratura, para que a gente tenha uma realidade diferente na aplicação dessas medidas de proteção à comunidade LGBTI. Nós temos avançado: em 2019, o STF criminaliza a lgbtfobia, mas demora muito tempo para isso se enraizar mesmo institucionalmente no nosso sistema de polícia e no sistema de justiça. Esse é o grande desafio hoje, que é remover esses obstáculos culturais para termos mais apuração e responsabilização.

OP – Quero terminar com uma provocação. Quando soube, homem gay que sou, de sua existência, minha primeira reação foi "mais um gay branco padrão de condição social privilegiada – namorando certamente um quase gêmeo, como manda o padrão gay – conseguindo espaço de fala". No entanto, você é coordenador adjunto de um núcleo trans na universidade em que atua e é hoje considerado uma referência acadêmica plural. Quais os caminhos para sairmos de uma sociedade isolada por dores e egoísmos tornando nossa existência minimamente coletiva e política?
Renan – Essa é uma excelente questão para pensarmos os marcadores sociais que nos caracterizam. Cada pessoa fala, de fato, de um lugar. Meu trabalho e a minha elaboração no debate público são marcadas pelas condições de um homem gay branco cisgênero vivendo em São Paulo, de classe média, professor universitário. Agora é preciso que a gente amplie nosso exercício de diálogo e de construção de alianças para além desses lugares específicos em que estamos. A gente tem que fazer um esforço intencional nesse sentido. Esse meu último livro ("Novas fronteiras das histórias LGBTI no Brasil" – Editora Elefante, 2023) faz justamente esse esforço de mapeamento de histórias e memórias LGBTI por todo o Brasil convidando gente e produzindo estudos em Rondônia, no Amazonas, no Pantanal, em Campina Grande. Organizei com Paulo Souto Maior, colega da Federal do Rio Grande do Norte para justamente descentrar as narrativas para trazer pessoas trans, lésbicas negras, outros atores e sujeitos que têm muito a dizer e que, muitas vezes, não furam uma bolha do mercado editorial centrado no eixo São Paulo-Rio. São esforços como esses que estou dando exemplo que podem fazer esse debate ganhar mais corpo, mais projeção em torno das diferentes identidades para entender o Brasil de uma maneira muito mais complexa do que a gente imagina. E ainda bem que têm acontecido movimento que tem questionado e exigido essa abertura de perspectivas!

 

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