Jesus Cristo realmente era branco, com traços similares ao de um europeu, como indica a imagem majoritariamente disseminada há séculos? Por que sua representação como um homem negro gera incômodo em várias pessoas? Quais reflexões podem ser tiradas a partir das análises sobre as representações hegemônicas de uma das personalidades mais importantes da história da humanidade?
Assumir uma visão crítica diante desses questionamentos torna-se uma ferramenta relevante para avançar em tais discussões - e ampliar horizontes. Esse também é um entendimento do pastor, ator, deputado federal, historiador e escritor Henrique Vieira, que lançou o livro “O Jesus Negro - O Grito Antirracista da Bíbilica” pela editora Planeta.
Ao longo de dez capítulos e com capa ilustrada pelo artista Ilustrablack, a obra desenvolve uma visão crítica sobre a história de Jesus para mostrar como sua experiência o aproxima do povo negro e pobre. O autor busca romper com a ideia de um “Deus frio e punitivo” e apresentar novas perspectivas sobre conceitos de religião e sociedade.
Nesse sentido, são levantadas reflexões, por exemplo, sobre o embranquecimento de Cristo, bem como são discutidos temas como luta antirracista, desigualdade social e violência policial. Henrique Vieira também tenta apresentar “uma dimensão forte e amorosa de Jesus” e como “a força de seu amor é um antídoto para a violência do racismo e das injustiças sociais”.
Em entrevista exclusiva ao Vida&Arte, o pastor fala sobre a construção do seu livro, como o silêncio ajuda a reproduzir a violência racista “inclusive dentro das igrejas, a emoção de pessoas negras que se reconheceram na imagem de Jesus enquanto um homem preto e sua relação com a arte.
Teólogo, ele estuda há alguns anos a Teologia Negra, que se propõe a fazer interpretações da Bíblia a partir da experiência negra. Nomes como James Cone e Ronilso Pacheco são alguns dos destaques desse campo e o ajudaram “a perceber a conexão do Evangelho com a experiência do povo negro”.
“Percebendo o caráter colonizador do embranquecimento da figura de Jesus e que a pauta racial muitas vezes é silenciada dentro de muitas igrejas eu decidi escrever esse livro explicando por que é tão coerente e tão potente afirmar a face negra de Jesus de Nazaré para dialogar com este campo cristão e com a sociedade. Assim, contribuir para uma leitura antirracista do Evangelho”, explica.
"O silêncio é cúmplice do racismo"
Três aspectos são explorados por Henrique Vieira em seu novo livro. Primeiro, ele questiona por quais motivos “a imagem de um Jesus branco parece natural, neutra e universal, que ninguém questiona, mas a de um Jesus negro causa estranhamento, incômodo e as pessoas acham que é ‘forçação de barra’”. Dessa forma, busca denunciar o racismo presente nessa concepção.
Depois, ele reforça como “o silêncio não é neutro” e também é “cúmplice do racismo”. “Fechar os olhos para o racismo em nome da unidade e do amor - ‘somos todos irmãos, não temos que tocar nesse assunto’ - só ajuda a reproduzir a violência racista, inclusive dentro das igrejas”, diz. O pastor, então, tenta “romper” o silêncio sobre o reconhecimento do racismo na história do cristianismo e como ele opera muitas vezes na leitura da Bíblia.
“Eu conto uma história de quando eu era criança. Eu aprendi que a cor da salvação é branca e a cor do pecado é preta. Eu, com uma mãe branca e um pai negro, chegava em casa rejeitando a minha cor e dizendo para a minha mãe que queria ser parecido com ela, e não com meu pai. É apenas um exemplo das múltiplas violências que o racismo vai gerando”, compartilha.
Por fim, vem o argumento central do livro: o de Jesus como parte de um “povo oprimido, colonizado e explorado”, culminando na ideia de que é “é preciso interpretá-lo não pela lente do Estado que o matou, mas pela lente da periferia que o formou”.
“Jesus não era de Roma, capital do império. Não era de Jerusalém, cidade mais importante da Judéia. Ele era de Nazaré, um vilarejo camponês. Portanto, o endereço social de Jesus é a experiência do povo oprimido. Ora, se eu creio na ressurreição de Jesus e que ele está presente na minha vida e no mundo, preciso ver a partir daquilo que a Bíblia me informa, e a Bíblia me informa que Jesus se revela na experiência do povo oprimido”, defende.
É mais do que a pele
“Não há possibilidade científica de Jesus ter sido um homem branco de olhos azuis, cabelo liso e loiro”, aponta Henrique Vieira. O pastor alega que o embranquecimento de Jesus é “ideológico”, “eurocêntrico” e relacionado a um “projeto de colonização”. Ele afirma que um homem judeu na Palestina naquela época não era branco, mas sim com um semblante mais próximo ao pardo, como parte da leitura atual indica pertencente ao povo negro.
Seu livro, porém, não se restringe a isso: “Para além de evidências historiográficas e geográficas, o livro vai além. É mais do que epiderme, pele. É a experiência de Jesus, é a condição desse homem que nasce marcado para morrer, que nasce culpado até que se prove o contrário, que nasce sofrendo preconceito por sua origem territorial étnica e que nasce tendo que fugir da violência operada pelo Estado. Será que as pessoas não percebem a conexão dessa experiência com a luta do povo negro hoje no Brasil? É mais do que pele. É experiência de vida”.
Emoções e reconhecimento
Propor novas percepções sobre ideias difundidas há tanto tempo certamente gera repercussões das mais variadas. Entretanto, mesmo que a ideia de retratar Jesus como um jovem preto dos dias atuais possa ter gerado "incômodo" e "estranhamento", vale destacar o lado positivo das manifestações sobre a discussão do livro de Henrique Vieira.
"O (tanto) que eu tenho recebido de mensagens positivas, agradecidas, emocionadas, de pessoas acolhendo o livro como bálsamo, como consolo e como empoderamento!", celebra o pastor. Ele ainda revela ter visto "abraços fraternos, lágrimas, família emocionadas e pessoas negras dizendo que estavam se reconhecendo na pessoa e no semblante de Jesus".
O desejo é realizar lançamentos do livro em que haja rodas de conversa para "trocar ideias" e gerar novos debates a partir de sua obra.
O deputado federal Henrique Vieira
Eleito deputado federal pelo Psol - RJ na última corrida eleitoral, em 2022, Henrique Vieira alega fazer um mandato “com pé no chão, consistência e diálogos necessários” para continuar na luta pela justiça social e em defesa de direitos. Segundo o pastor, porém, enfrentar todo esse cenário “não é fácil”, pois, por vezes, a Câmara se torna um ambiente “cheio de interesses” que podem passar “longe do sofrimento do povo”.
“Tem sido uma experiência muito importante, de muito amadurecimento pessoal, de luta por justiça social, em defesa dos direitos humanos, do povo negro, dos indígenas, da luta das mulheres, da luta dos LGBTs, da luta do povo pobre e trabalhador. Estou tentando fazer um mandato popular coletivo, horizontal e firme em defesa da democracia. Um mandato construído a partir das lutas do povo, que afirma uma cultura de paz e que enfrenta a cultura do ódio, das armas do autoritarismo e do negacionismo”, relata.
"A arte, para mim, é como a fé"
Multifacetado, Henrique Vieira consegue transitar além dos campos políticos e religiosos. Para o pastor, a área artística também é uma realidade. Ele descobriu a arte por meio da palhaçaria e posteriormente fez curso de teatro, atuando em peças e em filmes, como no caso do longa-metragem "Marighella", dirigido por Wagner Moura. Na música, já fez parcerias com Emicida ("Principia") e Martinho da Vila ("Oração Alegre").
Falar de Henrique Vieira é, portanto, tratar também sobre a arte - e, a partir disso, sobre o amor à vida: "A arte, para mim, é como a fé. É uma resposta minha de amor à vida e de vontade de impregná-la de sentido. Já que a vida é tão frágil, precária, já que eu não posso segurar o dia a dia na minha mão, então eu quero fazer arte. Eu quero impregnar a vida de um sentido profundo. A arte existe porque a vida não dá conta da própria vida".
O Jesus Negro
O POVO+
A entrevista completa e em vídeo com o pastor Henrique Vieira será disponibilizada no O POVO+ nesta sexta-feira, 30. Ele também discute sobre seu enfrentamento ao “fundamentalismo religioso” e à discriminação contra religiões de matrizes africanas.
O podcast Vida&Arte é destinado a falar sobre temas de cultura. O conteúdo está disponível nas plataformas Spotify, Deezer, iTunes, Google Podcasts e Spreaker. Confira o podcast clicando aqui