"O jornalismo é, também, uma construção de memória. Somos testemunhas da história que acontece diante dos nossos olhos, todos os dias. Construir memória é o nosso papel". É com essa premissa que a jornalista e escritora paraense Cristina Serra, que já foi correspondente em Nova York e comentarista do Programa do Jô, lança o livro "Nós, Sobreviventes do Ódio - Crônicas de Um País Devastado".
Promovido pelo Centro Cultural Banco do Nordeste, o lançamento acontece nesta quarta-feira, 5, às 19 horas, no BNB Clube. Com entrada gratuita, o evento terá a presença do jornalista cearense Nilton Almeida para guiar o debate acerca da obra, além do encerramento com um pocket-show.
"Nós, Sobreviventes do Ódio - Crônicas de Um País Devastado" é uma reflexão sobre o ofício jornalístico em meio ao governo de Jair Bolsonaro e a pandemia do coronavírus. Com apresentação do jornalista Janio de Freitas e texto da contracapa de Juca Kfouri, a obra reúne 224 crônicas publicadas pela autora no jornal Folha de S.Paulo, entre 2020 e o começo de 2023.
Em entrevista exclusiva ao Vida&Arte, a jornalista detalha o processo de pesquisa e os sentimentos vividos até a conclusão do livro, além de dar conselhos para os jornalistas da nova geração, e revelar sua opinião sobre o futuro da profissão. Confira:
O POVO: Em que momento você chegou a conclusão que precisava escrever "Nós, Sobreviventes do Ódio"?
Cristina Serra: Muitos leitores sugeriam que eu publicasse meus artigos em livro e comecei a refletir sobre isso. Quase no fim do ano passado, percebi que os artigos documentavam o período tenebroso que vivemos no Brasil que juntou, de uma vez só, os ataques à democracia, a pandemia, os ataques aos direitos humanos e ao meio ambiente como nunca tínhamos visto antes. Concluí que o livro seria um registro da memória desse período, uma memória que não pode se perder para que nós, brasileiros, possamos cobrar as devidas responsabilidades pelos crimes que foram cometidos contra o povo e contra as instituições democráticas.
O POVO: Como funcionou seu processo de pesquisa, além da organização dos textos durante os acontecimentos políticos?
Cristina Serra: Antes de qualquer coisa, sou repórter. Então, sempre pesquisei muito sobre qualquer assunto que eu escrevi, mesmo quando escrevia sobre temas que eu já conhecia bastante. São artigos de análise e de opinião, mas tudo que escrevi - e escrevo - tem uma base factual, está amparado na realidade e em fatos concretos. Não é palpite. É opinião embasada. Em tempos de desinformação, ou fake news, acho muito importante destacar isso. Só escrevo sobre assuntos que eu conheço muito bem.
O POVO: Tendo em vista o contexto social e político que aborda sua obra, quais os principais conselhos para os jornalistas dessa nova geração? O que eles podem esperar do mercado?
Cristina Serra: Sem ética não existe jornalismo, sem ética não existe democracia e nem é possível construir uma sociedade, um país. Eu diria que, basicamente, o jornalismo se baseia numa relação ou num pacto de confiança entre o jornalista e o leitor ou espectador, ouvinte. O jornalista tem por obrigação entregar ao leitor um relato dos fatos o mais objetivo possível e com pluralidade de opiniões. Mas, como eu disse, as opiniões têm que estar embasadas na verdade, na realidade. O maior patrimônio do jornalista é sua credibilidade. E o leitor, acredito eu, sabe reconhecer isso. Para os jornalistas mais jovens, digo que a profissão exige muito de nós e o mercado é bem difícil, com salários até indignos. Ao mesmo tempo, acho que as democracias no mundo nunca precisaram tanto de bom jornalismo como agora. É um paradoxo, mas é a realidade.
O POVO: Seu livro perpassa a chegada de Bolsonaro ao poder, a gestão de Paulo Guedes e a pandemia do coronavírus. Quais foram os principais desafios de exercer jornalismo neste período? De que forma aplicou seus aprendizados no livro?
Cristina Serra: Foi muito difícil atravessar tudo isso como cidadã e jornalista. Me sentia agredida praticamente cada vez que o ex-presidente abria a boca. Durante a pandemia, com milhares de brasileiros morrendo todos os dias, suas palavras eram de agressão, ofensa e desrespeito à dor das famílias. Faz até mal lembrar tudo isso, mas é preciso lembrar justamente para que não se repita. Por isso, esse esforço de documentação e memória do livro. Além disso, o ex-presidente estimulava a violência contra os jornalistas o tempo todo. O levantamento que a Federação dos Jornalistas faz todo ano mostra que a violência contra os profissionais de imprensa explodiu durante o governo Bolsonaro, em especial, contra as jornalistas mulheres, e houve até casos de violência física. Eu nunca sofri este tipo de violência. Comigo o que aconteceu foi a violência virtual, com xingamentos e ofensas nas minhas redes sociais. Claro que o objetivo disso é a intimidação. Mas, nesse sentido, Bolsonaro fracassou. A imprensa continuou fazendo o seu trabalho e denunciando os casos de corrupção no seu governo, que não são poucos.
O POVO: No contexto sócio-político atual do País, como você definiria o momento que o jornalismo vive, e no que os profissionais devem estar mais atentos, ou mesmo, buscando aperfeiçoar?
Cristina Serra: O jornalismo enfrenta inúmeros desafios e não só no Brasil. É no mundo todo. A transformação tecnológica, a concorrência desleal das chamadas Big Techs, a crise no modelo de negócios e, em alguns casos, uma crise de credibilidade, tudo junto e misturado. Ao mesmo tempo, vejo um jornalismo muito vibrante em novos sites, canais e plataformas digitais. Eu mesma, por exemplo, sou comentarista no canal ICL Notícias, que está há um ano no ar, no Youtube. A tecnologia possibilita muitas formas de fazer jornalismo. O que eu acho que não muda é a essência do jornalismo que é, e sempre será, contar boas histórias.
O POVO: Como uma jornalista que já esteve em contato com diferentes veículos de informação, há uma dificuldade de escrever sobre temas políticos quando se perpassa por diferentes canais jornalísticos? Isto é, como agir diante de diferentes vertentes?
Cristina Serra: Na minha experiência pessoal, aprendi muito em cada um dos veículos que trabalhei. Claro que cada um tem sua linha editorial, privilegia mais esse ou aquele assunto, tem essa ou aquela abordagem. Mas o papel do repórter deve ser sempre buscar notícia e informação de qualidade, bem apurada, exclusiva, e insistir para que suas histórias sejam publicadas, no caso das matérias que tenham alguma sensibilidade para o veículo, digamos assim. A verdade é que não existe vida fácil no jornalismo. É até bom falar sobre isso para desglamourizar a nossa profissão. Já faz tempo que fui para o jornalismo de opinião e, nesse caso, a liberdade é bem maior. Isso ficou muito evidente na Folha. Muitas vezes escrevi críticas ao próprio jornal e a Folha sempre as publicou. Foi uma experiência muito bacana.
O POVO: Seu livro é uma forma de documentação e memória para o povo brasileiro. Acredita que, com o constante avanço das redes sociais e a velocidade no jornalismo, há uma tendência desse tipo de registro ser colocado em risco? O que enxerga para o futuro da profissão?
Cristina Serra: O Brasil é um país sem memória. O exemplo da Comissão Nacional da Verdade (CNV) fala por si. A CNV foi criada em 2012, mais de 20 anos depois do fim da ditadura. Foi um trabalho importante, mas muito limitado porque muito tempo havia passado, muitos arquivos não foram totalmente abertos etc. Não pode acontecer o mesmo com esses quatro anos de pesadelo que vivemos com Bolsonaro. A inelegibilidade dele não basta. É uma punição muito leve para o mal que ele fez ao país. Meu livro, como eu disse, é uma forma de registro, documentação e memória para que nada semelhante volte a acontecer.
"Nós, Sobreviventes do Ódio - Crônicas de Um País Devastado"
Quando: quarta-feira, 5,
à 19 horas
Onde: BNB Clube (av. Santos Dumont, 3646, Aldeota)
Entrada franca
Valor do livro: R$ 59,00
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