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Ainda somos os mesmos? Vídeo com Elis Regina de IA aprofunda debates sobre tecnologia
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Ainda somos os mesmos? Vídeo com Elis Regina de IA aprofunda debates sobre tecnologia

Propaganda que "revive" a cantora Elis Regina aquece debate sobre os usos de IA
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Maria Rita e Elis Regina: campanha da Volkswagen (Foto: divulgação)
Foto: divulgação Maria Rita e Elis Regina: campanha da Volkswagen

Um "reencontro inédito". É assim que a Volkswagen define a mais recente propaganda da marca, um vídeo que cria, a partir de inteligência artificial (IA), um "dueto" das cantoras Elis Regina (1945-1982) e Maria Rita. Mãe e filha, as duas — que conviveram somente por quatro anos, até o precoce falecimento de Elis — aparecem cantando "Como nossos pais", de Belchior. 

Entre reações contrárias e favoráveis à propaganda, desponta o debate sobre os impactos dessas tecnologias em diferentes âmbitos.

Pesquisadora na área de memória e identidade cultural com ênfase em inteligência artificial, mestre e doutoranda em Direito Constitucional pela Unifor e sócia-fundadora do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais, a cearense Cibele Alexandre Uchoa aborda as mudanças de paradigmas causados por diferentes usos de IA. Ecoando a canção de Belchior cantada na propaganda, a dúvida que desponta é: em meio à escalada de novas tecnologias, "ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais"?

O POVO – Muitas experiências de consumo de produtos culturais são definidas pelo momento específico daquele consumo, como assistir a uma peça de teatro ou visitar uma exposição. De que formas o uso da inteligência artificial na cultura impacta a fruição artística?
Cibele Alexandre – Até pouco tempo, quando pensávamos em IA, era comum vir à mente robôs inteligentes, prontos para exterminar a humanidade. Mas a verdade é que a IA está presente em nossas vidas há tempos, como nos assistentes virtuais (Alexa, Siri etc.) e nos algoritmos de redes sociais. Quando você fala em experiências culturais definidas pelo momento vivido, isso se liga diretamente à indústria cultural e às formas que o mercado utiliza para direcionar o consumo, hoje muito presente nas redes sociais, já que passamos a uma vivência híbrida, na qual estamos conectados à Internet e convivendo em redes sociais ao longo do dia. O direcionamento do consumo por esses algoritmos impacta todos os setores da vida, inclusive a forma como consumimos cultura, desde aquilo que nos desperta mais interesse, se relacionando ao conteúdo, até o formato que escolhemos consumir, se relacionando ao tipo (teatro, cinema, dança, museus, shows etc.). Esse direcionamento, hoje verificado principalmente na atuação das big techs que comandam redes sociais, tem alto poder de definir o que vai ser consumido.

OP – Existem políticas de preservação e salvaguarda de patrimônios materiais e imateriais que buscam proteger de edifícios concretos a expressões simbólicas de um povo. Quais as relações possíveis — positivas ou negativas — entre a IA e a preservação de memória?
Cibele – Tem um exemplo que vivenciei e acredito que tenha utilizado o IA para o lado positivo, dá abertura para como a gente pode começar a implementar a inteligência artificial em relação à memória. No Memorial JK (museu sobre o presidente Juscelino Kubistchek), em Brasília, tem uma figura dele que, assim que você entra na frente, começa a dar uma explicação sobre o museu e você escuta a voz do JK. Acredito que eles tenham usado inteligência artificial para colocar aquele texto na voz dele, mas não era interativo. Imagino que a gente poderia pegar isso e colocar num museu uma figura ou personagem, histórico ou não, e fazer com que fosse interativo para que pudessem ser feitas perguntas, para que dialogasse com o interlocutor que foi fazer aquela visita — mas sem tirar o papel dos mediadores das instituições, seria mais um recurso educativo. Do ponto de vista negativo, a gente tem as deepfakes (técnica de manipulação de vídeos que usa IA para produzir conteúdos de pessoas falando ou fazendo coisas que nunca fizeram). As deepfakes cumpriram muito bem esse papel de fazer com que as pessoas acreditem, tenham adesão a determinados discursos. Se elas já acreditam nisso e não verificam o que é verdadeiro ou não, com as deepfakes isso vai ficar ainda mais profundo. O que a gente projeta é que elas venham como um boost das fake news e sejam implementadas com refinamento. Vai ficar ainda mais difícil saber o que é verdadeiro ou não.

OP – Como "reviver" figuras, como no caso da propaganda com Elis Regina, se relaciona com o deepfake? Quais as convergências e divergências entre as práticas?
Cibele – Esse revival de figuras públicas converge em relação às deepfakes no que diz respeito às técnicas de produção e, provavelmente, na maioria dos casos, no objetivo de obter ganhos financeiros. Enquanto "reviver" artistas tem o objetivo de produzir comerciais, trazer essas figuras às novas gerações etc., as deepfakes objetivam conduzir ou recriar narrativas históricas, induzir ao erro etc., geralmente com fins políticos, os quais têm outros tantos fins.

OP – O direito de imagem de figuras públicas, vivas ou mortas, já causa discussões por si só, mas de que forma a IA impacta o debate público sobre isso? Quais os limites éticos — e até jurídicos — de criações e recriações de personalidades?
Cibele – É possível que os limites éticos sejam balizados pelos limites jurídicos. A Constituição fala da inviolabilidade da honra e da imagem das pessoas, enquanto o Código Civil prevê que a utilização ou exposição dos direitos de imagem de uma pessoa podem ser proibidas se lhe atingirem a honra, a boa fama, a respeitabilidade ou tiverem destinação para fins comerciais. Em relação às figuras públicas, vivas ou não, qualquer utilização pode ser problemática caso não exista autorização, da pessoa viva ou da família. De toda forma, não existe uma disposição legal quanto ao tempo de utilização do direito de imagem como existe dos direitos autorais.

OP – Com as diversas utilizações de IA no mainstream — de propagandas a aberturas de séries —, surgem questionamentos sobre a autoralidade. O conceito de autoria está em transformação?
Cibele – O conceito de autoria está em transformação, e os debates em torno das legislações sobre direitos autorais, bem como de regulamentação das IAs já começou a acontecer em diversos países. Como as regulamentações sobre direitos autorais e comunicações não vieram tão longe ao ponto de cobrir essa tecnologia ou a necessidade de regulação das redes sociais, o movimento é de criação de propostas legislativas e de desenvolvimento da literatura especializada. O que verifiquei até agora é que mesmo as pessoas com mais expertise no assunto de direitos autorais ainda não conseguem visualizar tão bem como essas questões vão se desenrolar.

Leia no O POVO + | Confira mais histórias e opiniões sobre música na coluna Discografia, com Marcos Sampaio

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