Após visita ao Ceará em abril, o jornalista Zeca Camargo compartilhou algumas impressões da viagem em texto publicado na Folha de São Paulo no último dia 5. A coluna começa com uma confissão de que, na posição de turista, a arte não é o primeiro pensamento que vem à cabeça dele quando pensa em visitar Fortaleza, por exemplo. Em seguida, admite que a associação faz parte de "uma certa dificuldade em redefinir características de certos destinos".
Ele ainda afirma que a expressão "choque cultural" não foi o suficiente para o que viu durante a visita à Pinacoteca, equipamento cultural da Secretaria da Cultura do Ceará (Secult-CE) gerido em parceria com o Instituto Mirante. Depois de conhecer as obras, o comunicador sugere a inversão do roteiro turístico tradicional: "querendo voltar, pelas artes, sim, pelo estupendo prazer de encontrar uma cena tão vibrante que vai sempre se renovar com novas mostras. Mas também pela alegria de lembrar que uma referência de turismo pode (e deve) ser plural".
O tom de admiração de Zeca em relação ao que descobriu nas recentes andanças por aqui abre espaço para debater um novo momento da arte. De que maneira as movimentações culturais desenvolvidas nas demais regiões do País dialogam com as produções que sempre foram pulsantes no Ceará? "Sempre tive muito cuidado de não me colocar em um lugar que pudesse ser restritivo. Sempre soube do perigo que pode ser a alcunha do "cearense" ou do "regional". Como quem exerce o cotidiano da arte, ou que parte dessa matéria-prima que é a poesia, a pintura e todos esses elementos que não se compartimentam, entendo que somos artistas. Essa relação não exclui o que deve ser a matéria-prima, que é onde você está, o seu estar-no-mundo. E o meu estar-no-mundo se faz no Ceará", direciona o pintor, gravador, desenhista e diretor da Pinacoteca do Ceará, Rian Fontenele.
O artista visual reforça "o grande espectro da arte cearense" com "condições de ocupar todos os espaços" Brasil afora. Ainda no início de 2023, telas de Nice Firmeza e Estrigas puderam ser vistas no Museu Nacional da República (Brasília), enquanto Leonilson esteve no MAM de São Paulo. Já Sérvulo Esmeraldo ganhou exposição no Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que criações de Aldemir Martins e Efrain Almeida estão expostas no Museu de Arte Moderna (MAM) da Bahia.
O profissional menciona a dupla Terroristas Del Amor e o artista Charles Lessa como exemplos, e ainda relata que as obras do pintor Chico da Silva, radicado no Ceará, que estavam em exposição na Pinacoteca de São Paulo, chegam a Fortaleza em julho como uma parceria entre as duas instituições. "Estando como gestor de um equipamento que tem o Ceará no seu nome, é basilar o pensamento de que somos um espaço que tem como função não só promover esse intercâmbio (de obras e artistas), mas o conhecimento e a fruição de artistas locais".
Rian ressalta que o Estado se mantém como protagonista do cenário cultural a partir de recentes projetos políticos, que possibilitaram a abertura de equipamentos como a Estação das Artes e o Centro Cultural do Cariri. Ele também pontua que, desde a abertura, a Pinacoteca almeja a amplitude em conjunto com os demais equipamentos. Cada exposição tem a "presença cearense" em destaque, seja pelos curadores, obras ou presenças do acervo. Esta ponte busca "ramificar caminhos", algo que o diretor aponta como um exercício de todas as ativações formativas e parcerias institucionais. "As nossas grandes exposições têm nos colocado como um museu nacional e com ambições internacionais, um espaço de excelência onde um jovem artista cearense possa estar sendo mostrado como um grande mestre em qualquer museu do País".
Olhar atento
É com esta premissa que o Estado se coloca como um lugar de "fruição e difusão" da criação artística, o qual deve ser um destino cultural a ser vivido, festejado e experimentado. "Se Bahia e Pernambuco já estiveram à frente com seus espaços, nos últimos anos o Ceará vem construindo uma rede de equipamentos que potencializam em si a cultura cearense, uma cultura plural em diversas linguagens, seja pintura, escultura, performance, vídeo e todas as suas ações. Falta furar a bolha da produção hegemônica do eixo Rio-São Paulo", contesta.
As múltiplas alternativas presente entre os incontáveis - e necessários - movimentos transitórios do campo artístico possibilitam que este sentimento de identidade possa ser reconhecido em diferentes situações. Por vezes em uma mostra na esquina de casa ou, talvez, em milhares de quilômetros à distância de um território conhecido. A proximidade e o olhar atento à produção contemporânea é uma das propostas da Casa Gabriel, localizada em São Paulo e inaugurada em novembro de 2022. A primeira exposição, intitulada "Tempo e Transparência", foi composta por obras de Sérvulo Esmeraldo, Leonilson, Luiz Hermano, Tetê de Alencar, Sérgio Gurgel e Azuhli.
Gerente geral da Casa Gabriel, Márcia Lontra enfatiza que o espaço pretende alcançar uma agenda dinâmica de visibilidade. Por isso, a comemoração de um ano do projeto também terá uma chamada pública dirigida a artistas que nasceram no Nordeste. "A proposta é realizar uma mostra coletiva, com um número aproximado de 20 artistas, cujos projetos de exibição serão selecionados por uma comissão de avaliação, de onde três sairão vencedores e premiados. Estamos em fase de elaboração do edital que brevemente será disponibilizado aos interessados", detalha.
Expansão criativa
O artista Charles Lessa acredita que ainda será difícil para que os criadores artísticos do Estado sejam identificados sem a demarcação de territorialidade. Ele está com a primeira mostra individual em São Paulo, intitulada "Uma Dose de Alegria Pura e Legítima", até o dia 5 de agosto na Nós Galeria. "Lá em SP sou artista caririense, cearense, nordestino. Não que isso seja problema, mas existe uma resistência em incluir nossas produções no cenário de uma produção nacional", sinaliza.
Ele permaneceu durante nove dias na cidade para a inauguração do projeto, promovido por meio do trabalho conjunto entre as galerias Cave, Nós, Garrido e o galerista Pedro Diógenes. Entre uma estadia no edifício Copan - "que por si só já foi uma experiência memorável" - e show do cantor Getúlio Abelha, Charles também aproveitou para visitar amigos artistas que só conhecia pela internet e apresentar suas produções para os visitantes do espaço cultural. Ele explica que a mostra é inspirada no texto "Se Eu Fosse Eu", de autoria de Clarice Lispector, e cita: "mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar".
Com base nestes escritos que estiveram entre os favoritos do artista durante a adolescência, ele desenvolveu esta série de mais de vinte obras com uma "retomada teen" e um universo de personagens que existem unicamente na dimensão da pintura. "Por não vir de uma formação clássica em pintura, me sinto bastante livre para experimentar e mixar materiais mesmo sem saber se vai funcionar. Minha pintura é bem figurativa, amo criar retratos e ficções com personagens elaborados a partir de uma paleta de cores bem saturadas, olho muito para a minha história pessoal, me inspiro nas minhas vizinhas idosas, na cultura pop e faço uso de um humor típico de sagitariano", considera.
O retorno ao Crato, lugar onde nasceu e estabeleceu o próprio desponte artístico, na última semana trouxe um certo tipo de melancolia pela "dificuldade de acesso a quase tudo" que movimenta a produção. Desde então, relata, ele pensa muito no questionamento que Belchior faz na música "Arte Final" (1988): "a saída será mesmo o aeroporto?". Quando elabora sobre o questionamento acerca das necessidades para que o Ceará se firme entre os principais destinos escolhidos por turistas em rotas culturais, ele compartilha o desejo de um plano estratégico que possa ser executado junto com a galera em que confia. "Nossa produção aqui do sul do Estado é muito mais caririense do que cearense. Acho que o Ceará pode aprender mais conosco a fazer turismo cultural, sempre numa perspectiva menos predatória, claro, do que a que temos hoje".
Turismo cultural
Para a troca entre aqueles que estão ou desejam estar nos circuitos artísticos espalhados pelo País seja promovida, é necessário compreender como o fazer cultural está inserido nos demais setores de políticas públicas. O Vida&Arte entrou em contato com o secretário do Turismo de Fortaleza, Alexandre Pereira, para entender como pode acontecer a aproximação entre duas áreas tão expansivas: a cultura e o turismo.
Ele menciona que o conceito de turismo cultural está inserido em modelos mais recentes da Pasta, uma nova forma de fazer turismo no mundo. Entre duas concepções tão vastas, a definição abarca "movimentos de pessoas em busca de motivações essencialmente culturais, viagens para festivais e outros eventos culturais, visitas a localidade e monumentos, viagens para estudar a natureza, arte ou peregrinações". Em essência, é colocar a arte como destaque em viagens. "Mas você precisa mudar o destino movimentando as pessoas que lá moram, fazendo eventos culturais", menciona.
Alguns destes futuros projetos estão sendo estudados no Seminário Internacional Sobre Destinos em Turísticos Inteligentes, que aconteceu até sexta-feira, 7, no Uruguai. "É um trabalho, antes você não tinha 30% dos eventos culturais que tinha em Fortaleza. Muita gente vê o crescimento da cidade como um todo. A cultura ainda está um pouco atrás porque é um processo'. A reportagem também entrou em contato com a Secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor) para informar detalhes sobre medidas direcionadas ao turismo cultural e valores de iniciativas, mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria.
"O meu estar-no-mundo se faz no Ceará"
Confira a entrevista completa com o pintor, gravador, desenhista e diretor da Pinacoteca do Ceará, Rian Fontenele:
O POVO: Em matéria divulgada em janeiro de 2023, o Ministério do Turismo afirmou que as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro eram as preferências dos turistas para destinos culturais no Brasil. Na sua visão como artista e gestor cultural, o que ainda é necessário para que o Ceará esteja inserido nas principais escolhas de destino de turismo cultural?
Rian Fontenele: O Ceará, neste momento, se coloca como protagonista nesse cenário, com a abertura de equipamentos de excelência na capital e no interior. O projeto político dos últimos anos, que trouxe a construção da Pinacoteca, da Estação das Artes, do Centro Cultural do Cariri e do novo MIS, se soma a uma política que já vinha sendo executada e faz com que o Estado se coloque como um lugar de fruição, difusão e de criação artística. É a partir dessa realidade que reivindicamos o lugar de destino cultural a ser vivido, festejado, experimentado. Falta ao país saber de todo o investimento e de toda a construção feita nos últimos anos, com recurso próprio da Secretaria de Cultura, do Governo do Estado, em equipamentos que projetam o real e atual cenário artístico cearense. Se Bahia e Pernambuco já estiveram à frente com seus espaços, nos últimos anos o Ceará vem construindo uma rede de equipamentos que potencializam em si a cultura cearense, uma cultura plural em diversas linguagens, seja pintura, escultura, performance, vídeo e todas as suas ações. Falta furar a bolha da produção hegemônica do eixo Rio-São Paulo.
OP: Como você avalia a relevância da presença de artistas cearenses em distintos espaços culturais nacionais e internacionais? O cenário atual é propício para este “intercâmbio” de obras e artistas?
Rian: As exposições que abrem a Pinacoteca mostram o grande espectro da arte cearense e afirmam que temos todas as condições de ocupar todos os espaços. Temos jovens artistas que estão, hoje, em várias mostras coletivas e ganhando prêmios nacionais, como a dupla Terroristas Del Amor, como Charles Lessa, assim como as gerações anteriores que estão sendo valorizadas aqui e que fazem parte dessa construção. Nesse momento inicial de abertura, a Pinacoteca tem recebido gestores, curadores e artistas de várias partes do País para que a gente possa fazer esses intercâmbios e construir uma relação, inclusive com a mídia especializada, para a divulgação do cenário artístico cearense. Abrimos já com um festival internacional de Fotografia (o Fotofestival SOLAR) para ampliar a visão do que o Ceará tem construído. Agora em julho, iremos abrir a exposição do artista Chico da Silva, já numa parceria com a Pinacoteca de São Paulo, uma relação institucional que se constrói desde o primeiro momento, e também sediaremos a mostra Verbo, em que traremos a principal mostra de performance do Brasil, com artistas de outras regiões e de fora, aumentando essa exposição do campo das artes cearense. Estando como gestor de um equipamento que tem o Ceará no seu nome, é basilar o pensamento de que somos um espaço que tem como função não só promover esse intercâmbio, mas o conhecimento e a fruição dos artistas locais.
Como artista, sempre tive muito cuidado de não me colocar em um lugar que pudesse ser restritivo. Sempre soube do perigo que pode ser a alcunha do “cearense” ou do “regional”. Como quem exerce o cotidiano da arte, ou que parte dessa matéria-prima que é a poesia, a pintura e todos esses elementos que não se compartimentam, entendo que somos artistas. Essa relação não exclui o que deve ser a matéria-prima, que é onde você está, o seu estar-no-mundo. E o meu estar-no-mundo se faz no Ceará. Meu trabalho tem uma pesquisa autoral, uma pesquisa onde há um mergulho psicanalítico, um mergulho existencial no silêncio – o silêncio de algazarra que é estar consigo. Esses temas, na verdade, são universais, mas é claro que essa luz dura, essa luz de sol a pino, que é tão ofuscante, tem uma presença muito forte, por isso eu busco a sobriedade dos noturnos, da sombra, do nanquim para esse equilíbrio. Então, mesmo me sabendo com temas universais, há esse lastro por ter e por abraçar o mais regional, que no caso da pintura, do processo matérico da pintura e dos desenhos, traz a luz. E a luz do Ceará é uma luz que espeta. É um sol que espeta.
OP: Em entrevista ao Vida&Arte no mês de maio, Tiago Santana apontou a Pinacoteca como um espaço que pode expandir possibilidades para além do turismo tradicional. Qual posição a Pinacoteca assume dentro dessa projeção?
Rian: Desde a abertura, e em apenas seis meses, a Pinacoteca do Ceará já recebeu mais de 75 mil pessoas. Nesse tempo, temos feito o intercâmbio direto entre instituições, curadores e artistas, tornando esse olhar o mais amplo possível, seja nas conversas, nas mostras, nos festivais que temos recebido, nas parcerias institucionais. A Pinacoteca se coloca dentro de um processo de rede com os demais equipamentos da Secretaria da Cultura sem que haja sombreamento. Ao contrário, estamos construindo a possibilidade de crescimento juntos, para que possamos desenvolver políticas de residências, pesquisas e construção desse cenário do campo artístico cearense com produtores, artistas, expógrafos, cenógrafos, luminotécnicos, sendo uma área de visibilidade e de atuação num processo formativo e de acervo. As nossas grandes exposições têm nos colocado como um museu nacional e com ambições internacionais, um espaço de excelência onde um jovem artista cearense possa estar sendo mostrado como um grande mestre em qualquer grande museu do país.
OP: Você já pontuou que a Pinacoteca atua como um espaço plural de pertencimento das artes cearenses. De que maneira os novos equipamentos culturais do Estado podem trabalhar para disseminar essa ideia de identificação?
Rian: A Pinacoteca, como essa grande ágora de acolhimento do artista cearense, do artista nordestino e do artista brasileiro, é, na verdade, uma expectativa e uma construção de muitas décadas. Uma construção e uma busca por esse pertencimento da própria cidade. Nesse momento inaugural, a cidade tem abraçado e tido curiosidade sobre o que é exposto. A exposição “Bonito pra chover”, com 170 artistas cearenses de todas as linguagens, de diversas gerações, mantém-se em exposição porque se entende que é um marco desse momento e da celebração da arte cearense. E, como um reforço positivo disso, estamos finalizando a edição e a construção do catálogo “Bonito pra chover”, onde celebramos os artistas em exposição, nas suas diversas linguagens, de diversas gerações, além da comemoração do centenário do Aldemir e do Bandeira, como uma ação direta de reflexão sobre esse tempo. Esse catálogo, para além desse registro, traz uma série de entrevistas, ensaios e textos de pesquisadores e artistas cearenses, reafirmando esse esforço de pertencimento da cultura cearense nesse momento.
OP: Ao mesmo tempo em que a Pinacoteca destaca a arte cearense, tem um trabalho importante de trazer artistas de outros estados em exposições e eventos. Como acontece o diálogo do equipamento para também propagar trabalhos do Ceará? Como o contato com outras instituições influencia os projetos desenvolvidos em museus e galerias?
Rian: O diálogo institucional da Pinacoteca, que é feito em todos os momentos com instituições, artistas e curadores que temos trazido para aulas abertas, num processo sistemático de ateliê aberto, tem sido de uma importância direta para que se conheça os artistas locais. O primeiro edital publicado na Pinacoteca do Ceará foi voltado para pesquisa e criação com os artistas locais. Temos como missão não só levar todas essas pesquisas, criações, exposições para o interior, mas fazer a itinerância das nossas mostras.
Todos os curadores convidados trabalham com um curador local para que essa pesquisa de campo dialogue com o cenário da arte desenvolvida no Estado. A “Negros na Piscina”, uma exposição coletiva de arte contemporânea, foi desenvolvida com um olhar atento aos jovens artistas cearenses, por exemplo. Na edição do mostra Verbo, a ser realizada neste mês, vamos trazer o olhar de curadores e de artistas performáticos de outras regiões do País para o cenário dessa linguagem aqui.
Cada exposição tem o olhar e a presença cearense colocadas em exibição, seja pelos curadores, seja pelas obras, pela presença do acervo, fazendo um paralelo com artistas que têm o mesmo tema e que trazem um vocabulário comum aos nossos. Essa ponte construída ramifica caminhos e assim compreendemos que deve ser o exercício de todas as ativações formativas, de todas as parcerias institucionais, ampliando sempre as exposições que montamos.
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