O debate sobre a nudez que se seguiu à encenação de "Os Sertões", em Quixeramobim, não dá a dimensão do acontecimento. Encobre incômodos bem maiores, que a nudez comercial, por exemplo, não provoca. Compreensível, para certa gente, que se use o nu para vender cerveja, revista ou automóvel, mas fazer dele móvel de desmoralização da hipocrisia constituída, nunca.
A encenação de "Os Sertões", pelo Oficina, em Quixeramobim, foi além da des-moralidade e do espetáculo. Mais que um evento artístico deve ser lido como um acontecimento histórico. Ou melhor, como uma tragédia caósmica, conforme revelou-me o próprio Zé Celso. A ele, ponderei que Antônio Mendes Maciel enxergava a construção do Belo Monte sob o foco de uma luneta esotérica, numa escatologia que relacionava conjunções de planetas, posicionamento de constelações e movimentos solares, ligados a fenômenos outros como a obtenção da imortalidade. Já a poesia de Euclides da Cunha, por baixo da pretensão positivista de explicar o homem pelo meio, revela a natureza imersa num conflito titânico e permanente, que tem o ser humano entre seus atores. Para os dois, ali se debatiam forças colocadas além da história e da sociedade, em narrativas que alcançam dimensões cósmicas.
Zé Celso, trabalhando na mesma frequência, embora concordando com este meu raciocínio, acrescentou que, em sua encenação, "Os Sertões" era tratado em sua dimensão caósmica, inserindo-se, entretanto, no tempo e no espaço da história e da sociedade. Com isto, queria enfatizar que a ele interessavam as forças que, na contraposição dos complementares, caos & cosmos, colocam-se ao lado da des-ordem, enquanto móvel da mudança e da renovação. Neste contexto, a nudez mais que uma provocação, deve ser lida como uma des-repressão ou um des-massacre, como quer Zé Celso.
Aliás, o que se viu em Quixeramobim, não foi uma encenação, mas a própria vida, vivida em uma outra dimensão, a dimensão da arte ou do maravilhoso, como queiram. De modo que ninguém passou ileso por aquela experiência vital. Tratou-se do reencontro de Antônio Maciel com seu lugar de origem, na forma da visita de seu duplo orgiástico, como queiram, a uma Quixeramobim contemporânea, talvez não tão diferente daquela que o enxotou pelo ridículo há quase 150 anos atrás.
Todos os cuidados foram tomados para seu retorno. Veio recomendado pela mídia, envolto em uma aura de arte, cultura e civilidade, que colocava todas as suas extravagâncias acima de qualquer suspeita. Chegou antes, foi acostumando a cidade. Em ritual público, beijou o chão de sua casa, hoje tombada pelo patrimônio, e em nome do outro abençoou o povo simples da rua. Mas ao contrário do outro, que cultuava um deus austero, sedento de ascetismo e penitência, esse Conselheiro tinha por deus Dioniso e vinha acolitado por Eros.
Um grupo de missionárias leigas da Igreja Católica aproveitou para vender camisas com a figura de Antônio Conselheiro, enquanto acompanhava o acontecimento. Irmã Teresa Cristina, que mora há mais de 40 anos em Quixeramobim comentava na fila para comprar ingressos, que na cidade tratavam Antônio Maciel com chacota e que, imaginava ela, o tratariam do mesmo modo se ali voltasse. Já outra irmã, Socorro Barbosa da Silva, contou, comovida, como foi o cortejo do Oficina, pelas ruas da cidade, do dia anterior à estreia de Os Sertões: "Era como se fosse a figura dele. Na frente da casa onde Antônio Maciel nasceu, ele se ajoelhou, baixou a cabeça e beijou o chão, como se fosse o próprio Conselheiro. Depois, voltou-se para o povo e disse: - Eu sou Antônio Conselheiro, sejam bem-vindos à minha casa. Depois, fizeram o casamento de Antônio Maciel com Brasilina (ou foi com Joana Imaginária?). Na hora do casamento, vi bem quando um pessoal gritou: - Corno! Quando disseram que Antônio Conselheiro fez história, também ouvi alguém dizer que quem fez história aqui foi Seu Antônio Dias Ferreira, um homem importante, dono desse lugar, que cedeu partes de suas terras para a paróquia e para fazer a cidade".
Houve uma intensa preparação da cidade para receber o Oficina. Os historiadores locais e as autoridades educacionais, através de exposições e documentários cinematográficos, mostraram a Quixeramobim, um Antônio Mendes Maciel revolucionário. Incentivaram e viram com orgulho a participação de militantes do MST e de jovens e crianças assentadas no acontecimento como um fato positivo. "Porque eles são sujeitos do resgate da terra", explicou entusiasmada a Secretária de Educação, Socorro Pinheiro. Gostaram do que viram, pelo menos nos primeiros dias.
O restante da cidade acompanhou "Os Sertões" pelo rádio e pelo ouvir falar da boca dos seus habitantes, que perfaziam um quarto da plateia presente na arena armada pelo Oficina. Na primeira noite, senhoras da sociedade e até padres podiam ser vistos nas arquibancadas. "Por que perguntam a mim? A nudez é algo tão natural e inocente!" Respondeu um padre ao ser questionado por um repórter. A elite da cidade fez um grande esforço por se mostrar civilizada e compreensiva com as ousadias de Zé Celso, mas, aos poucos, foi rareando na plateia. Uma parte ficou, inclusive as irmãs missionárias leigas, que adoraram este novo Conselheiro. Também ficou o pessoal do MST e dos assentamentos de reforma agrária. Para o restante da cidade, as notícias dos fatos ocorridos na arena do Oficina chegaram aumentadas. Não se falou das lições de vida, história e arte, que ali se desenrolaram.
Na manhã do terceiro dia de atividades na arena do Oficina, o Paço Municipal de Quixeramobim estava repleto de roceiros e representantes de associações populares. Sabiam da presença daquele outro Conselheiro por ouvir falar. Reivindicavam a liberação do Segura Safra prometido pela Prefeitura. Um deles, José Eudes Alves, contrariado, criticava a ausência das autoridades municipais. "Eles só aparecem na hora de pedir votos", enfatizou. Estava mais indignado, porque soube que ao tomar conhecimento que eles estavam em frente à Prefeitura, uma funcionária teria comentado com desdém: "- Aquela carniça já chegou?" Depois foi se esconder. "Fez como o Coxinha do Garra da Patrulha", personagem popular da televisão, que fala bem na frente da pessoa, mas quando ela se afasta, chama de carniça.
"Os Sertões" foi uma lição de teatro e vida, tendo como protagonista o povo brasileiro. Zé Celso trabalhou o seu teatro, como um des-teatro, no sentido de romper com as convenções do teatro aristotélico à italiana, propondo um teatro mais próximo das festas e folguedos populares. A começar pelo espaço, trabalhado como uma rua, uma estrada, ou um grande rio, em permanente fluir. Daí o cortejo, em movimento ininterrupto, com autos, onde se vivia cada "mistério", destacado e com linguagem singular. Não apenas, cada episódio funcionava isoladamente, como até mesmo cada cena, assemelhava-se a um entremez de reisado. Diferentemente do teatro psicológico, onde se busca um ator que se assemelhe ao personagem durante todo o espetáculo, o Oficina brinca de coringa, lançando mão de vários atores para fazer um mesmo personagem e de um ator para fazer vários personagens. Homens fazem papéis femininos e mulheres, masculinos. Atores com tipo físico popular fazem incorporam autoridades etc. Há uma liberdade cênica total e uma inverosimilhança absoluta.
Nem mesmo Zé Celso e Antônio Conselheiro ou Euclides da Cunha se sustentam como protagonistas. O centro do espetáculo é o coro, que trabalha a plateia como seu prolongamento. O todo é como uma grande festa, uma grande diversão, embora no particular haja todos os teatros, desde as tragédias gregas, passando por Shakespeare, pelo teatro de rua, até o teatro de revista. Zé Celso rege a manifestação da multidão às vezes de dentro, como um mestre de reisado, às vezes na beira do campo, como um treinador de futebol. Todo o elenco do Oficina trabalha de olho em cada pessoa da plateia, trocando energias, observando seus mínimos movimentos. Improvisa, reage, mexe com o público, por isso, cada apresentação é imprevisível, diferente e única.
Mas por trás desse "vir a ser" dionisíaco, há um trabalho de extrema dedicação, disciplina e rigor, seis anos de buscas e experimentações continuadas. O aquecimento dos atores, para entrar em cena, por exemplo, é longo e rigoroso como o de um bailarino. A preparação corporal é rigorosa. Quando eu disse a Zé Celso que acompanhava o Oficina desde 1972, a partir de sua primeira temporada no Ceará, ele me perguntou: - E aí, nós continuamos em forma?
Na sua performance, o Oficina não faz concessões, nem políticas, nem estéticas, nem éticas, nem morais. Liga os fatos de Belo Monte à vida atual, denuncia o poder constituído, seja religioso ou político, acusa as elites e aponta novos Canudos. Em contraposição, faz o elogio dos sem-tetos e dos sem-terra, de todos os oprimidos e despossuídos que lutam. Grita: - A gente somos jagunços! E insinua que o Morro da Favela talvez tenha sido o maior legado de Canudos.
O que aconteceu em Quixeramobim, entre 14 e 18 de Novembro, pode ser lido de tantas maneiras, quanto pode ser lida a vida, tal a complexidade do que se vivenciou, tais as reações provocadas, tal a experiência vivida, numa espécie de tsunami cultural. No final da última noite, Zé Celso denunciou o estupro da Terra pelas grandes empreiteiras, usando metáforas sexuais. A história de Canudos fez-se a história de um estupro, do martírio secular da Terra. Se em Canudos Euclides da Cunha vislumbrou um outro Brasil, selvagem e indomável, José Celso descortinou um outro universo, um mundo desejante, subvertido pelo sexo.
O podcast Vida&Arte é destinado a falar sobre temas de cultura. O conteúdo está disponível nas plataformas Spotify, Deezer, iTunes, Google Podcasts e Spreaker. Confira o podcast clicando aqui