Desejos, vontades e objetivos a gente aprende a ter desde a infância. É o que nos move ao próximo passo e geralmente sabemos exatamente o que vai acontecer depois do percurso traçado e da meta alcançada, mas o sonho, sonho mesmo, é algo inesperado. Não se pode tocar, existe apenas dentro da gente e não há motivo algum para que ele aconteça a não ser a plena satisfação solitária. É por isso que ele é tão difícil de ser compartilhado com o outro. Sonho é algo só seu e o meu eu realizei quando cheguei a Campinas, no Parque Shangri-la, mais precisamente na Casa do Sol, onde a escritora Hilda Hilst morou por quase quatro décadas, até sua morte, em 2004.
Essa viagem, eu vos conto, começou muito antes de eu levantar voo. Partiu daqui, desse mesmo lugar de onde escrevo agora, quando ao falar com a amiga Renata Giaxa sobre o sonho, tive a informação de que ele não poderia se realizar, pois "há dois anos a Casa do Sol está fechada para visitações."
No mesmo instante, sem mesmo respondê-la (desculpa, Renata) abri o site do Instituto, sim, a Casa do Sol foi transformada em Instituto Hilda Hilst, em 2005, por Mora Fuentes, escritor, ex-namorado e amigo, com o intuito de tornar acessível a obra de Hilda para as próximas gerações. Em 2011, a residência foi tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Artístico e Cultural de Campinas (Condepacc), uma conquista de Daniel Fuentes, filho de Mora e da artista plástica Olga Bilenky. Daniel nasceu e se criou na casa, suas primeiras palavras, ensinadas pela autora, que não gostava de criança, mas dele sim, foram "Nave Ave Moinho", o trecho de um poema. Hoje, já adulto, ele é Presidente do IHH e administrador dos direitos autorais da poeta.
Pois bem, assim como Hilda, sou do signo de touro, o que me confere extrema teimosia, seja para o bem, ou para o mal, e por isso não aceitei aquele destino e comecei a mover céus e terras (por meio de ligações, e-mails e mensagens) para finalmente, depois de algumas semanas e de muitos perdidos, chegar ao contato com Olga Bilenky.
"Olá, Olga, aqui é Diego, falo do Ceará".
Olga Bilenky está digitando: "Olá, estou dirigindo, mais tarde nos falamos".
Olga Bilenky é artista plástica e mora na Casa do Sol desde 1970. Foi casada com Mora Fontes e é mãe de Daniel, ela foi uma das pessoas mais próximas a Hilda durante a vida e hoje é uma das responsáveis pelo Instituto. Por trás de seu avatar no whatsapp, a pintura de uma mulher de costas, com os cabelos vermelhos presos em coque e muito suspense.
Trocamos algumas palavras durante as semanas que se seguiram, Olga foi bastante receptiva, mas só conseguiu confirmar que realmente me receberia horas antes, na quinta-feira que antecedeu a sexta-feira de 19 de maio, seis dias depois do meu aniversário.
"Diego, você pode vir amanhã?" Perguntou Olga por áudio. Eu não pensei duas vezes, afinal sonhos acontecem assim, inesperadamente, sem que entendamos muito bem. Basta que a gente aceite e diga "sim", e foi exatamente o que eu fiz, mesmo sem saber como chegaria até lá.
Acordei cedo em São Paulo, fazia 14 graus naquela manhã e a antessala da realização é ainda mais difícil de descrever porque essa parte nunca havia sido imaginada. Quando a gente sonha é com a chegada e desconhecemos total o caminho, assim como eu também desconhecia o caminho que me levaria até Olga. "Estarei esperando no portão" prometeu ela, e eu só acreditei quando cheguei e avistei de longe uma mulher pequena de corpo, mas grande de alma, brincando com um cão, que agora sei, é uma cadela feliz chamada Balalaika.
Eu havia entrado num Uber até a rodoviária do Tietê, depois num intermunicipal por duas horas e meia até Campinas e depois em mais um Uber até a casa 359 do Shangri-la e durante aquele tempo de deslocamento só me vinha à cabeça os momentos em que eu não tinha nada, mas tinha a literatura de Hilda Hilst. E lembrei exatamente do dia em que ela morreu e eu vi jornal Hoje, e desisti de assistir aula no cursinho para encontrar a Bianca, a Andreia e Geórgia no bloco de Letras da Federal. Naquele dia lemos Hilda um para o outro, tínhamos "Do Desejo", coleção com toda a obra que a Globo lançou em 2001 e fez um sucesso estrondoso. A Olga me disse, que a Hilda sempre soube que seria lida pelo mundo.
Ela não foi para a Casa do Sol aos 35 anos para se isolar, muito pelo contrário, ela gostava de estar entre amigos, de sair, beber, frequentar restaurantes, ela construiu a Casa do Sol, na fazenda herdada da mãe, porque tinha um objetivo: trabalhar. Ser lida, acredito eu, sempre foi o sonho. Hoje, a escritora tem livros traduzidos até para a língua japonesa.
Quando desci do Uber, como bom cearense emocionado, abracei Olga como se abraçasse uma amiga. Balalaika pulou em minhas pernas e eu, que tenho certo temor por cachorros muito grandes, ou nem tão grandes assim, daquela vez me senti seguro. Fui caminhando com as duas, através do bonito jardim, em vários tons de verde, repleto de plantas enormes e vivas, em direção à centenária Figueira. A luz do sol procurava brecha entre as palmeiras altíssimas para atingir meus olhos, e ao que me aproximava da árvore à minha frente menos eu enxergava.
Chorei. Um choro que eu não havia chorado antes. Pensei que se as pessoas que me conhecem há anos vissem o meu rosto não me reconheceriam. Olhei para Olga, imaginando que meus olhos, nariz e boca estavam fora do lugar e que ela se assustaria a qualquer instante, olhei para o banco de pedra onde Hilda passou horas escrevendo porque tinha algo que precisava ser dito sem urgência e me perguntei o que se faz depois de um sonho."Essa figueira realiza desejos de escritores, sabia? A própria Hilda disse ao Caio (Fernando Abreu): 'Cainho, fala com a Figueira que ela resolve'".
Olga se afastou e me deixou a sós, talvez na esperança de que meu rosto voltasse a ser o mesmo com o qual cheguei, mas isso jamais aconteceria.
Eu era outro.
Toquei o corpo da árvore e ela tocou o meu. Fechei os olhos, fiz um pedido e trouxe os outros comigo para os sonhos que virão.
Restauro e residência
O Instituto Hilda Hilst vai passar pelo 1º restauro em breve. A obra deve durar aproximadamente seis meses e custar R$2 milhões, arrecadados pelo programa de Transferência de Potencial Construtivo da Prefeitura de Campinas. Após a reforma, a Casa do Sol vai voltar a receber artistas de todo o mundo para residências. Olga Bilenky afirma que a casa é um lugar voltado para o trabalho artístico e assim permanecerá através das gerações.
Saiba mais: hildahilst.com.br
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