"Para alcançar a civilização, era necessário respirar o ambiente sofisticado da belle époque", contextualiza Oswald Barroso em "O Teatro e a Cidade" (2002). A construção do Theatro José de Alencar, descrito pelo autor como "o reino do ecletismo na arquitetura e no afrancesamento nos costumes", foi relevante marco desta busca "civilizatória" por parte de elites econômicas e políticas do século XIX.
Àquela época, havia um desejo profundo pela construção de um "teatro oficial" no Estado. "Fortaleza experimentava um desenvolvimento econômico ímpar proporcionado pelo mercado de exportação de algodão. A elite que se formava vivia desejosa de elementos modernizantes, tomados pela inspiração europeia que representava o ápice da civilização naquele momento", contextualiza o sociólogo Erich Soares.
O especialista destaca que sucessivas tentativas de construção deste primeiro "teatro oficial" foram registradas no século XIX, ainda que frustradas. O acúmulo de projetos não concretizados — seja por impossibilidades financeiras, seja por críticas de opositores políticos que consideravam a ideia supérflua — foi interrompido pelo governo de Nogueira Accioly, responsável pela construção do TJA.
O equipamento tornou-se, então, símbolo da gestão accioliana, "adquirindo um papel que ultrapassava valores artísticos, consolidando também o 'espírito do tempo' num período de preocupações com o regramento social e a moralidade dos comportamentos na cidade", descreve Erich.
"A concepção de um grande teatro desenhado segundo inspiração francesa, junto a outras transformações realizadas na cidade, era uma forma dessas elites se afirmarem, contraditoriamente, diante de uma sociedade evidentemente marcada por pobreza e profundas desigualdades", analisa o sociólogo.
A construção do TJA, avalia, evidenciou diferenças sociais da época. "Mesmo não sendo frequentado apenas pelas elites, estas ocupavam posições demarcadas dentro do espaço, ocupando melhores lugares, investindo em comportamentos distintivos, mais contidos, buscando serem percebidas enquanto alta classe", aponta.
A área dos camarotes era majoritariamente ocupada por membros abastados da sociedade fortalezense, enquanto as classes populares ocupavam, especialmente, as chamadas "torrinhas", área superior da plateia chamada à época de "inferninho" — tanto pelo calor quanto pelo público.
Na imprensa da época, que agia em prol do ideal "civilizatório", é possível encontrar registros como o do jornal A República que, em 29/10/1910, registrava que os "habitués das torrinhas do José de Alencar parecem caprichar em dar provas de sua má educação".
Apesar dos marcadores sociais que existiam na estrutura do Theatro ao longo das primeiras décadas de atuação, o equipamento, ressalta Erich, "respondeu às demandas sociais que se transformaram profundamente em Fortaleza" no século XX.
É possível distinguir a partir da década de 1970 o início de um movimento que culminaria na reatualização da vocação do equipamento empreendida no restauro dos anos 1990. Nas cinco primeiras décadas do equipamento foram três as principais reformas ocorridas, em 1918, 1937 e 1956.
Mesmo que tenha sido tombado pelo Iphan nos anos 1960, o estado do equipamento naquela década é descrito por Oswald Barroso como "de quase abandono". No Vida&Arte, o jornalista Carlos Dália denuncia em matéria de 29/10/1968 "uma das mais sérias e tristes crises" do TJA, com ameaças de ruir.
Os movimentos de reforma e restauro vieram nos anos 1970, abrindo espaço para um debate inicial sobre o lugar do TJA naquele contexto — que, destaca-se, era ainda de ditadura militar. "Houve muita disputa sobre os rumos do 'novo' Theatro. Os movimentos sociais buscavam no teatro popular uma forma de aproximação do povo; já o regime militar fomentava uma resposta que fazia frente à tentativa de arte crítica e engajada", contextualiza Erich.
"A demanda de agentes e instituições ligadas ao teatro popular e amador, desde os anos 1970, pela facilitação do acesso a formas culturais que entendiam como verdadeiramente populares ampliou-se com a redemocratização nos anos 1980", segue o sociólogo. Chega-se, então, ao contexto que propiciou o restauro de 1991: o mudancismo, que lidava ainda com questões urbanas acentuadas no Centro.
"O entorno do TJA sofria com uma movimentação de deslocamento populacional em direção a outras regiões da cidade, como a Aldeota, imprimindo à região caráter de decadência sob o olhar de antigos moradores de classes médias e altas. Essa complexa transformação — inclusive urbanística, que deslocou a atenção de públicos historicamente frequentadores para outras regiões da cidade e novas formas de consumir arte ou entreter-se — imprimiu outras perspectivas de utilização do equipamento, tornando o Theatro mais facilitado a usuários antes marginalizados", conclui Erich.
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Ecletismo na arquitetura do TJA
Em termos arquitetônicos, o TJA ficou marcado pela mistura da "arquitetura portátil produzida na Escócia, de cunho nitidamente industrial à linguagem do Ecletismo internacional e brasileiro", descreve Romeu Duarte, colunista do O POVO, arquiteto, professor e superintendente regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no Ceará entre 1997 e 2008.
O equipamento foi tombado em 1964 pelo Iphan. "Quando se tomba um edifício, ao tempo em que são definidos os seus valores fundamentais que devem ser rigorosamente preservados, tal como é a estrutura metálica do TJA e os gabaritos do entorno, outros elementos são liberados para intervenção, de maneira a adaptá-lo às funções contemporâneas", explica Romeu, que destaca que estes aspectos foram observados na intervenção realizada em 1991.
Vocações do TJA em rede
"Ele não é apenas um equipamento artístico e nem apenas um equipamento patrimonial, ele tem os dois usos. O Theatro José de Alencar é um complexo cultural". A definição é de Selma Santiago, gestora cultural e ex-diretora do equipamento (2015-2019). Este alargamento de funções é um dos frutos do restauro de 1991, que reestruturou não somente a parte material, mas também simbólica do TJA. Trinta anos depois, em meio a antigos e novos desafios, quais as vocações possíveis para o Theatro no contemporâneo?
Centenário, o equipamento viu muitos outros espaços culturais serem criados no Ceará, do Cineteatro São Luiz — que foi inaugurado oficialmente em 1958, mas adquirido pelo Estado somente em 2011 — à recente Estação das Artes — aberta com função cultural em 2022. Pensando na Rede Pública de Equipamentos Culturais do Governo do Estado, o Vida&Arte questionou a Secretaria da Cultura sobre o papel e o lugar do TJA hoje na Rece.
A Secult ressalta "significativos papéis" do TJA para a cultura do Ceará. "Além da importância histórica, o equipamento oferece programação diversificada de atividades artístico-culturais de fruição e de formação", resume. "O TJA, no contexto da Rece, por sua história, possui um papel de liderança dos espaços cênicos, sua história é importante para dimensionar estratégias de formação, difusão das artes e para preservação do nosso patrimônio histórico", afirma a pasta.
Para além dos limites do equipamento, o TJA tem forte diálogo com o bairro onde está inserido: o Centro. O arquiteto e professor Romeu Duarte ressalta série de problemas na região e na integração dela com o Theatro. "A área oeste do Centro de Fortaleza, onde o TJA se encontra, hoje é um espaço necrosado. Edifícios fechados e abandonados, insegurança, tráfico de drogas, espaço público de péssima qualidade, violência", lista o também cronista do O POVO.
"Se o TJA se transformar em algo como o que proponho, a saber, um centro cultural pujante e diuturno, irá se constituir numa âncora de vitalidade cultural no Centro, setor urbano que atualmente só funciona das 8 às 17 horas", sugere o arquiteto.
Romeu defende que o Theatro seja repensado como uma "usina de cultura" na região. O sugerido novo movimento de reestruturação do equipamento, e por consequência do Centro, inclui aproveitamento de prédios tombados na região — como a sede do Iphan, o Lord Hotel e a antiga sede do DNOCS — e até a implantação da Câmara Municipal na região.
"O TJA deve ser o centro de um grande conglomerado de espaços artísticos flexíveis e com funcionamento 24 horas. Do contrário, continuaremos a assistir ao declínio da bela casa de espetáculos", avalia.
As questões do Centro são também ressaltadas pela ex-diretora do TJA Selma Santiago. Em escolhas de gestão que buscavam atrair turistas, ela conta que, junto a agências de turismo, procurou viabilizar a criação de roteiros oficiais que passassem pelo TJA.
"Mas a gente sempre ouviu a reclamação de que o acesso para um city tour era muito difícil pela questão do Centro. Essa barreira do trânsito foi bem complicada", afirma a gestora, que lembra de experiências de diálogo difícil com instâncias como a Autarquia Municipal de Trânsito e Cidadania.
Desafios de captação
Instituições privadas e sem fins lucrativos, as Organizações Sociais atuam na gestão compartilhada de equipamentos a partir de contrato firmado com o Estado. No caso do Theatro José de Alencar, ele é, desde 2016, gerido pelo Instituto Dragão do Mar, OS pioneira no Ceará. A promessa do modelo é de gestão desburocratizada e com possibilidade de ampliação da captação.
De acordo com a Secult, o contrato de gestão do TJA firmado com o IDM é de R$ 4.837.000,00, recurso que custeia "todo o funcionamento do Theatro José de Alencar: manutenção, equipe e áreas finalísticas".
Para além do valor, a Secult afirma que o TJA "tem buscado fechar negócios/parcerias que gerem valores econômicos e simbólicos, baseados no capital intelectual, cultural e criativo, criando pontes entre a arte e a cultura e o desenvolvimento econômico".
A pasta reforça a cobrança de pautas, as visitas guiadas, os ensaios fotográficos e o Café Iracema "como formas de ampliação do capital para além do contrato de gestão".
"O IDM tem ampliado a capacidade de fechar parcerias com organizações da sociedade civil, órgãos públicos e instituições privadas", segue a Secult.
O cenário descrito pela pasta se difere daquele encontrado pela ex-diretora do equipamento Selma Santiago logo que assumiu o cargo, em 2015, um ano antes do início da gestão pelo IDM. Série de questões estruturais e de manutenção foram levantadas pela equipe, de processos de contratação emperrados a espaços fechados. "Os recursos eram poucos, não tinha contrato de gestão na época, então era uma manutenção direta da Secult, um processo muito lento", contextualiza.
Foi a partir de contratações do próprio governo e de diferentes níveis de parcerias com outras instituições, segundo Selma, que as demandas foram sendo cumpridas. "Assim, fomos implantando várias coisas. Conseguimos o restauro do anexo, inauguramos uma sala multiuso, reabrimos a biblioteca e informatizamos o sistema de concessão de livros, reinauguramos o espaço de exposições, reabrimos a sala de figurino, abrimos o café do teatro e conseguimos fazer algumas manutenções prediais", elenca.
"A manutenção é de responsabilidade do Estado, mas precisa de aporte financeiro, seja uma emenda parlamentar que ajuda em uma coisa, seja uma parceria com uma instituição. É a moeda que não é o dinheiro, são parcerias que colaboram com o teatro", define a ex-diretora.
Uma chamada de ocupação foi realizada, conta Selma, a partir da chegada do primeiro contrato de gestão com a OS. O valor, ela recupera, "nem se compara com o dos outros (equipamentos), mas era o que tínhamos".
De acordo com a Secult, no atual contrato de gestão o montante destinado à programação é "de aproximadamente 1 milhão de reais e custeia atividades de difusão e de formação".
A captação de recursos a partir do IDM, no início, era inexistente, conforme Selma. "O que pude captar foi pelas outras moedas, que não foram o dinheiro, mas sim o que o Theatro tem a oferecer: a capacidade de mobilização, de imagem, o espaço em si e a construção e possibilitação de parcerias", destaca.
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