Com 21 anos de trajetória, o grupo Nóis de Teatro, nascido na Granja Lisboa e vivido por jovens do bairro, retorna aos palcos cearenses com duas estreias neste mês de julho. Para questionar os limites do território, da identidade, da estrutura socioeconômica, e da mobilidade urbana, os artistas encenam “O Que Acontecem Quando os Muros Caem”, que teve sua estreia nesta quarta-feira, 19, mas segue com apresentações nesta e na próxima semana. Com dramaturgia de Altemar Di Monteiro, um dos fundadores do grupo, “Desterro” também está em cartaz e promete mergulhar na crise migratória mundial.
“O espetáculo complexifica as várias crises migratórias que os negros vêm passando no decorrer da história, desde os navios negreiros até a fuga dos corpos pretos de seus territórios. ‘Desterro’ traz a relação da constante territorialização do corpo preto para sobreviver”, comenta Kelly Enne Saldanha, 39, atriz e coordenadora do Nóis.
Tendo como marco inicial da história do grupo o espetáculo “Mariela-Uma prima distante de Cinderela”, de 2002, o coletivo nasceu da vontade de adolescentes fazerem peças de teatro em momentos de comemoração na Igreja. Com o tempo, os jovens passaram a sonhar mais alto, concretizando, assim, maiores espetáculos apresentados em diferentes bairros da Cidade. Como exemplo da conquista, o “O Que Acontecem Quando os Muros Caem” tem dias marcados para acontecer em Messejana, Vila Velha, Maracanaú, Granja Portugal e Praia de Iracema.
“Ocupar a cidade faz parte da expertise do Nóis. Quer seja espaços públicos ou privados, nosso desejo é que os artistas periféricos possam estar nos espaços que desejar”, afirma Kelly.
O ator Ricardo Henrique Gonzaga, 36, membro do grupo e graduado em Licenciatura em Teatro pela Universidade Federal do Ceará (UFC), ressalta a importância do movimento para expandir o contato com diferentes periferias. “Sempre foi muito importante para o Nóis estar em constante diálogo com outras periferias, sejam elas urbanas ou rurais. Esse movimento, pra gente, é um espaço de construção de residências e trocas de experiências para o Nóis e para outros inúmeros artistas.”
Presente no coletivo desde o início, Ricardo relembra que foram necessárias muitas fases até chegar ao aprofundamento das ideias que guiam a companhia atualmente. “Fomos amadurecendo enquanto pessoas, e enquanto artistas. Aprofundando as nossas posições políticas e referências poéticas, fomos criando a nossa forma de fazer teatro. Hoje, vemos o Nóis de Teatro como um coletivo que tem pensado a rua, a periferia e as questões sociais de uma forma particular, a nossa.”
Para além da evolução das ideias, Kelly Enne destaca que o nascimento do grupo se deu em um cenário político-cultural favorável à criação e à manutenção de grupos artísticos, tornando-se possível o acesso a diferentes recursos públicos para a profissionalização do trabalho e a realização de pesquisas que guiaram a montagem dos espetáculos.
“Em todo país, uma série de coletivos se juntaram e puderam realizar suas atividades culturais, fomentado por um governo que apresentava recursos para a comunidade artística. Por todo um caráter público e gratuito de nossas ações, o financiamento público tem sido nossa principal fonte de recursos, a depender da política estabelecida de governo, tanto em âmbito estadual ou federal. Nos últimos anos, por consequência do não investimento cultural advindo dessa política, o governo do estado tem sido nossa principal fonte”, pontua.
Colocando-se desde o princípio como "um dissenso ao projeto de cidade excludente, racista, misógino e LGBTfóbico que formula Fortaleza", como descreve Altemar di Monteiro, o grupo trabalha com as temáticas de diversidade de gênero, questões étnico-raciais, criminalização da juventude preta periférica, dentre outros atravessamentos. Como exemplo deste trabalho, estão as peças “Todo Camburão Tem Um Pouco De Navio Negreiro”, “Despejadas” e “Ainda Vivas”, com as quais o Nóis conseguiu circular o País.
“Estar conectados com outros grupos tem fortalecido nossas ações. Os contatos são realizados, em sua grande maioria, através de redes e fóruns, locais, estaduais e nacionais. Além do mais, temos intercâmbios, visitas e outras relações criadas com o intuito de fortalecer nossa caminhada”, acrescenta Kelly.
Entre as muitas conquistas em 21 anos de trabalho, algumas dificuldades também se fazem presentes. “O financiamento de forma continuada é nosso principal desafio. Vamos continuar incentivando crianças e jovens a se tornarem sujeitos sensíveis, protagonistas de um novo mundo, uma comunidade mais justa e menos violenta”, destaca Kelly.
Apresentações pelos bairros
"O Que Acontece Quando os Muros Caem" é resultado de um processo de formação realizada pelo Nóis em sua sede que é a Escola de Teatros Periféricos. Foram seis meses desse percurso formativo que trabalhou com pedagogias periféricas e afro referenciadas. .
Espetáculo: "O Que Acontece Quando os Muros Caem"
20 de julho, às 19 horas, na Praça Conjunto São Bernardo (Messejana)
26 de julho, às 19 horas na Praça do Beira Rio (Vila Velha)
27 de julho, às 19 horas na sede do Grupo Garajal (rua Dezoito, 119 - Jereissati I, Maracanaú )
29 de julho, às 19 horas no Espaço Rogaciano Leite
(rua Dragão do Mar, 81 - Praia de Iracema)
Todas as sessões são gratuitas.
"Desterro", encenado por Amanda Quebrada e Henrique Gonzaga, mergulha de forma mais profunda na crise migratória mundial e todas as suas consequências. "'Desterro' surge como um processo de imersão em nós mesmos, um lugar para pensar os caminhos percorridos, as dores de cada estrada e as escolhas em cada encruzilhada", explica Henrique.
Espetáculo: "Desterro"
21 e 22 de julho, às 19 horas, no Centro Cultural Bom Jardim (rua 3 Corações, 400 - Granja Lisboa) - gratuito
28 de julho, às 19 horas, no Teatro Dragão do Mar
(rua Dragão do Mar, 81 - Praia de Iracema).
Ingresso: R$ 15 (meia-entrada); R$ 30 (inteira). Venda no site Sympla e na bilheteria física do Teatro.