Ao longo de dez dias, os aplausos foram responsáveis pelo som mais ouvido na 54ª edição do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto (FIT Rio Preto). A cidade paulista foi palco de 30 espetáculos nacionais e internacionais para crianças e adultos - e contou com apresentações de artistas cearenses na programação.
O evento, realizado pela Prefeitura Municipal de São José do Rio Preto (por meio da Secretaria Municipal de Cultura) e pelo Sesc São Paulo, reuniu cerca de 27 mil pessoas em peças apresentadas em teatros, ruas e outras localidades do município. O Vida&Arte acompanhou a edição deste ano in loco e pôde observar a dinâmica do festival.
O norte da programação foi a prática da “escuta ativa”, buscando destacar temas “urgentes e caros da atualidade”. A equipe de curadoria, formada por Fernanda Júlia Onisajé, Fernando Yamamoto e Tommy Della Pietra, selecionou peças de oito estados brasileiros, da Inglaterra, Argentina e de Portugal.
Foram mais de 50 apresentações e 14 atividades formativas, envolvendo cerca de 500 pessoas entre artistas e técnicos que trabalharam diretamente no evento. A adesão da cidade ao festival foi notória: uma das cenas mais comuns era perceber filas de pessoas aguardando para conferir os trabalhos cênicos.
Willian Oliveira, um dos coordenadores executivos do FIT, ressalta como a organização de festivais de teatro tem sido “cada vez mais complexa” e um “desafio muito grande” para manter a constância de realizações, principalmente com a pandemia. Ele lembra o avanço de custos nos serviços e a redução no orçamento.
Ainda assim, enfatiza a importância de promover eventos como esse, ainda mais se considerar o potencial de formação de plateia a partir dos espetáculos. “O festival é muito importante para poder permitir um primeiro acesso a muitas pessoas ao teatro. Acho que talvez uma das das maiores marcas talvez sejam os espetáculos de rua, porque com eles muitas pessoas que não têm o hábito tradicional de se deslocar até uma sala cênica conseguem acessar o teatro”, pontua.
Na avaliação do coordenador, o FIT conseguiu promover muitas discussões em diferentes temas a partir das peças da programação. “A gente fica muito feliz de perceber que as pessoas aceitaram o convite de olhar para o outro e conseguiram se sensibilizar a partir do que está sendo mostrado em cena e do que está sendo discutido nas formativas”, afirma.
Nesse sentido, Jorge Vermelho, também coordenador executivo do FIT, ressaltou os pontos que nortearam esta edição quanto à curadoria. Ele indica que anteriormente a escolha dos espetáculos seguia um conceito pré-definido de acordo com a edição, e assim se observava quais obras dialogavam com o tema. Entretanto, isso se transformou em um “presídio” com o passar do tempo.
“A questão da escuta neste ano é muito isso: a gente precisa escutar. Escutar o que o teatro está querendo dizer e transformar isso em um projeto que possa, de certa forma, ter um diálogo entre uma peça e outra. Assim, elas criam conexões e a temática mais urgente se evidencia”, explica.
Ele identifica como tendências da cena contemporânea o posicionamento político das obras, bem como abordagens de questões como negritude e identitarismo. Para Vermelho, é necessário apresentar uma programação que vá além de “apenas” entretenimento. “O festival não pode ter compromisso somente com o entretenimento, com esse teatro que entra em cartaz para cumprir uma temporada. O festival também é um campo de posicionamento político”, elenca.
Uma das peças que remeteram ao posicionamento político foi “O Que Nos Mantêm Vivos?”, do Teatro Promíscuo. O trabalho protagonizado por Renato Borghi celebra os 65 anos de carreira do ator, ex-integrante do Teatro Oficina, e também reúne críticas ao período vivido sob o governo Bolsonaro.
Em certo momento da apresentação, Borghi aproveitou para homenagear o dramaturgo Zé Celso Martinez, que faleceu em 6 de julho. Jorge Vermelho lembrou a relação dele com o FIT: “Todos nós fomos atravessados pelo falecimento de Zé Celso, porque o FIT tem o seu DNA, não só pela presença dele com as obras do Oficina, mas por esse espírito que ele deixa como legado. O espírito de romper e de criar fissuras tem que ser o espírito de um festival. Acho que a gente herda isso”.
Em números
27 mil pessoas assistiram às sessões dos 30 espetáculos da programação do FIT
500 pessoas aproximadamente trabalharam no FIT, entre técnicos e artistas
Ceará em destaque
O Ceará foi um dos destaques da programação do FIT. Três espetáculos cearenses, além da peça “Brenda Lee e o Palácio das Princesas”, protagonizada pela cearense Verónica Valenttino, estiveram sob os holofotes do público. O primeiro a se apresentar foi Evan Teixeira, com o trabalho “O Bode Quer”.
O diretor misturou teatro, música e performance para reviver as “peripécias memoráveis” do Bode Ioiô, figura popular da cultura cearense que passeava pelas ruas de Fortaleza na década de 1920. Como pontua Teixeira, a dramaturgia da obra se constrói a partir da interação com a plateia, “e o povo de São José do Rio Preto teceu lindas narrativas nesse encontro com as histórias e causos do icônico Bode Ioiô”.
“Foi bonito perceber como a força das histórias e dos causos dessa figura emblemática contagiaram as pessoas para além das fronteiras territoriais, revelando que atos como a eleição de Ioiô a vereador, que foi eleito pelo povo fortalezense em 1922, sendo um dos mais votados, como voto de protesto pelo descaso político da época, é uma história muito latente em nosso país e que reverbera intensamente aonde quer que ecoe, pois se trata de um manifesto e empoderamento popular”, ressalta.
Com a peça infantil “Paraíso”, o grupo Teatro Máquina voltou a se apresentar no FIT. Essa foi a terceira vez em que o coletivo cearense deixou sua marca no evento e também o primeiro festival no qual o grupo participou pós-pandemia - curiosamente com um trabalho idealizado antes da crise sanitária.
O espetáculo destaca a temática ambiental e, na obra, quatro catadores-cientistas do futuro analisam elementos ordinários e extraordinários de eras esquecidas. Eles são acompanhados por uma formação monstruosa que os vigia disfarçada na paisagem. Após viverem uma experiência inesperada, eles imaginam uma “praia do futuro”. Entretanto, o futuro não é mais o mesmo.
Para a diretora Fran Teixeira, “Paraíso” permite que os integrantes façam uma revisão não apenas do trabalho do grupo, mas também de suas ações enquanto atores. Diante de uma obra para crianças, ela destaca a necessidade de compreender como o público infantil é capaz de assimilar questões complexas.
“Acho que o teatro para crianças, no geral, tem uma tendência de simplificar as questões, como se elas não pudessem estar diante de situações complexas, como a morte ou a dor. São assuntos que o teatro geralmente tem evitado supondo que as crianças não estão preparadas para isso. Mas, não: é exatamente por isso que a gente está trazendo essas questões, porque a gente acredita que é um problema nosso”, enfatiza.
Quem também tem experiência com peças voltadas ao público infantil é o grupo Pavilhão da Magnólia, que já levou ao FIT o espetáculo “Ogroleto”. Desta vez, porém, foi a vez do coletivo estrear um trabalho adulto no festival. Em “Há Uma Festa Sem Começo Que Não Termina com o Fim”, há o “reconhecimento da trajetória de um grupo que está há 18 anos em atividade”.
A afirmação é da atriz Silvianne Lima. Na peça, os integrantes se aproximam da plateia após período de distanciamento social e, com linguagens como performance, teatro, palestra e documentário, reúne memórias e reflexões sobre o Brasil atual. Para Nelson Albuquerque, o FIT ajuda a fortalecer o trabalho do Pavilhão da Magnólia.
“Eu acho que essa experiência fortalece nossa caminhada e a gente espera que abra possibilidades de circular, fazer outros circuitos com o trabalho, com diretores que já tínhamos visto em outras possibilidades cênicas e agora em meios diferentes”, pontua o ator.
Todo mundo tem uma história de medo para contar e o sobrenatural é parte da vida de cada um ou das famílias. Alguns convivem com o assombro das manifestações ou rezam para se libertar das experiências inesperadas. Saiba mais sobre “Memórias do Medo” clicando aqui