Sentada em uma cadeira à beira da piscina do hotel no qual está hospedada, Verónica Valenttino observa a paisagem. O céu está limpo, a manhã ensolarada e o canto dos pássaros preenche a atmosfera convidativa à conversa. Os óculos escuros em seu rosto não escondem a marca expressiva da atriz cearense: feliz, celebra mais um momento importante na carreira.
À noite, ela fará no Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto (FIT), em São Paulo, a primeira das duas sessões do espetáculo com o qual conquistou o prêmio Shell de Melhor Atriz, em 2022. Ela foi a primeira atriz trans a ganhar o troféu, considerado um dos principais das artes cênicas no País.
“Costumo falar que a Brenda me escolheu, sabe? Acho que o processo foi o lugar de escolha dessa ‘transcestralidade’ que a gente tanto fala”, afirma em entrevista ao Vida&Arte. O caderno acompanhou o festival de teatro em Rio Preto e conversou com Verónica Valenttino sobre seu surgimento, trajetória dentro do coletivo As Travestidas, repercussões de “Brenda Lee e o Palácio das Princesas” em sua carreira e a importância da representatividade na cena artística.
Para introduzir essa história (não a de Brenda Lee, mas a da artista cearense), é necessário realizar uma volta no tempo em direção aos anos 2000, quando Valenttino iniciou sua carreira como cantora e atriz em Fortaleza. Egressa do curso de Artes cênicas do IFCE, ela se encontrava em um período no qual não havia tanta abertura no teatro cearense para a diversidade como atualmente.
“Eu sou fruto da insistência de fazer teatro desses corpos dissidentes”. Seu “nascimento”, indica, veio no coletivo teatral As Travestidas, que se despediu dos palcos em 2023. “Eu começo a me entender enquanto ‘arteira’, enquanto mulher e enquanto ser responsável por algum ruído dentro da minha arte”, pondera.
Para Verónica, o grupo foi um marco para a cena cearense e um “divisor de águas”, influente em outros trabalhos que viriam no futuro em sua trajetória tanto no teatro quanto na música.
Ela lembra como naquele período era outro o contexto no qual reverberaram ideias sobre a a representatividade na cena artística - e ao longo do tempo foram reavaliando situações, como a “transfake”, prática na qual atores cis interpretam personagens transgêneros. Hoje, essa ação não é bem vista e o pedido é de que a representação seja feita por artistas trans.
“Quando começamos lá atrás - estou falando de um outro tempo, do Ceará, que a regionalidade também interfere -, nós éramos os primeiros grupos de teatro a levar essas questões em cena. Dentro desse trabalho, fomos nos entendendo quanto à nossa identidade, e a partir do momento em que começamos a ter consciência desse nosso lugar retomamos a nossa própria narrativa. Então, não tem mais sentido permitir que o outro fale por mim”, destaca.
“A representatividade é o fato de estar presente. Um branco não vai poder falar nunca sobre a vivência de um corpo preto. Um corpo cis não vai poder falar nunca sobre aquilo que passa, sofre e vive um corpo trans. Antes não era abordado isso porque não éramos vistas, legitimadas, então a partir do momento que a gente rompe com isso e passar a adentrar esses espaços não faz mais sentido outra pessoa falar por mim”, complementa.
Verónica ressalta a luta para que mais profissionais trans estejam em posições de destaque nas artes para “retomar a memória” - ou, como afirma, o respeito à “transcestralidade” - e retirar de circulação representações pejorativas ou que ridicularizem a comunidade T. Nesse aspecto, “Brenda Lee e o Palácio das Princesas” acaba sendo um exemplo dessa presença.
O musical protagonizado por Valenttino reúne sete travestis na equipe, sendo seis em cena e uma na banda. A peça retrata a trajetória de Brenda Lee, conhecida como “anjo da guarda das travestis” e uma das principais personalidades da militância trans no Brasil. Ela fundou a primeira casa de acolhimento para pessoas com HIV/AIDS.
O espetáculo foi um dos mais aguardados da programação do FIT Rio Preto e está disponível em formato audiovisual no perfil do Núcleo Experimental no YouTube. Além do prêmio Shell, Verónica recebeu o prêmio Bibi Ferreira na categoria “Revelação em Musicais” pelo seu papel.
“Eu me sinto honrada (com esses prêmios), porque estou representando uma multidão de ‘arteiras’. Costumo falar que nós somos ‘arteiras’ e não apenas artistas. ‘Arteiras’ pelo fato de fazermos arte e que, se não for por isso, nós morremos”, analisa. A atriz enfatiza como carrega sua “transcestralidade”.
“Quantas de nós já fizeram tanto desde muito tempo e não foram dignamente honradas? Acho que ‘Brenda Lee’ vem nesse momento para paramos e dizermos: ‘A gente está esquecendo de contar essa parte da história e essas narrativas’. Elas sempre existiram. Os nossos corpos sempre estiveram à frente”, corrobora.
Questionada se a partir dessas conquistas acredita que se tornou uma referência para as “arteiras”, ela indica que sim: “O tempo todo estamos sendo lembradas de que não merecemos tais oportunidades. Quando vejo essa situação, penso que não posso desistir, porque as minhas ‘manas’ lá do Ceará precisam perceber que é possível, sim, estar em outro lugar que não o da prostituição e da marginalidade, sabe? Então, eu me sinto viva e forte quando percebo que não posso cair porque outras precisam me ver de pé”.
Verónica Valenttino segue estudando e pensando em processos de criação para novos trabalhos - tanto no teatro quanto na música. A também cantora antecipa, sem dar muitos detalhes, que planeja um trabalho musical solo. “O público pode esperar um trabalho lindo, com muita verdade e parcerias incríveis”, adianta.
E quanto à “Brenda Lee” em palcos cearenses, há alguma previsão? Ela indica que está em negociacão e reforça a importância dos fãs “chegarem junto” para fazer o espetáculo ser realizado em Fortaleza: “Fico muito lisonjeada com o reconhecimento, mas quero ver na prática as mensagens de carinho que recebo nas redes sociais. É importante para a Cidade e para o Ceará ver o que estamos fazendo”.
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