"Olhos de cigana oblíqua e dissimulada." A frase que soa familiar para muitos brasileiros apareceu, pela primeira vez, em 1899, na obra "Dom Casmurro", publicada pela Livraria Garnier. Escrito por Machado de Assis, o romance tem como protagonista e narrador o personagem Bento Santiago. A trama avança em torno do amor dele por Capitu e do ciúme que Bentinho tem dela com o amigo Escobar, tensão que se torna o ponto central da narrativa.
Repleto de ironia e intertextualidade, "Dom Casmurro", ambientado no Rio de Janeiro do Segundo Império, foi e continua a ser material de estudo em escolas e universidades, assim como inspiração de obras cinematográficas e teatrais. A razão para isso? A diretora de teatro Aretha Karen ousa adivinhar.
"A história por si já é muito intrigante, a dúvida se Capitu e Escobar traíram ou não é algo muito discutido. Mas eu acho que, para além disso, o mais impressionante desse livro, pra mim, é que Machado não dá ponto sem nó. Tudo, absolutamente tudo, tem porquê. Ele escreveu Dom Casmurro narrado em primeira pessoa pelo protagonista que, sendo advogado, tem um enorme poder argumentativo e consegue facilmente envolver o leitor, principalmente com seu argumento de que está sendo ‘completamente honesto’, fazendo com que o leitor se sinta quase como um confidente", afirma Aretha.
Criado em 2012 por Aretha Karen, 32, e Eurico Mayer, 35, o Grupo Fascuscuz de Teatro estreia nesta sexta-feira, 11, o espetáculo "Casmurro", uma nova adaptação do romance de Machado de Assis para mergulhar nas memórias de Bentinho, desde o seu amor juvenil até a suposta traição de Capitu com Escobar.
Com elenco de seis atores, Eurico Mayer (Dom Casmurro), Axel Santiago (Bentinho), Bel Monteiro (Capitu), Pedro Costa (Escobar), e Thiago Nunes e Ana Bia de Matos (cantores), a história é contada através da união da dança com o teatro, tendo como trilha sonora grandes canções da música popular brasileira, como "O Canto de Ossanha", de Vinicius de Moraes com Baden Powell; "Insensatez", de Vinicius de Moraes com Tom Jobim; e "Tempo Rei", de Gilberto Gil, que serão cantadas ao vivo.
Em entrevista ao Vida&Arte, o diretor e ator Eurico Mayer conta os principais desafios de levar ao palco as mesmas dúvidas e questões da obra que indaga tantas pessoas até hoje.
"Durante o processo, foram inúmeras as discussões sobre isso. Não queríamos que o narrador fosse à parte da cena, nem que o espetáculo fosse apresentado com uma separação clara entre narração e performance. Até porque um está dentro do outro. Nós estamos contando uma história enviesada: são as memórias de uma pessoa que estão sendo representadas e não necessariamente os fatos como ocorreram. E memórias são falhas, a gente aumenta, esquece, mistura tudo quando junta com a emoção do momento e o passar do tempo. É uma dinâmica muito interessante de representar em cena, do quanto a emoção está construindo aquela lembrança. Vai depender da plateia se compadecer de Bentinho ou não ao final", comenta.
O grupo Fascuscuz nasceu a partir da ideia de realizar projetos cuja essência fosse a pesquisa teatral e cultural. Os fundadores deram início aos trabalhos com a produção de projetos artísticos e criação de roteiros originais para espetáculos, utilizando a pesquisa como fonte para o desenvolvimento das obras, que acabaram se voltando para incorporação da brasilidade em suas diversas formas.
Em 2017, o coletivo estreou o seu primeiro espetáculo, “O Grande Encontro - O Musical”, um texto autoral que traz o protagonismo ao nordestino em suas múltiplas facetas e tem como trilha as canções da coletânea "O Grande Encontro", de Elba Ramalho, Geraldo Azevedo, Alceu Valença e Zé Ramalho. O espetáculo teve temporadas também nos anos 2018 e 2019, e retorna aos palcos novamente em setembro deste ano.
Já tendo montado outro espetáculo de “Dom Casmurro”, no ano de 2019, com o elenco da Escola de Dança Passos, Aretha conta quais são as principais mudanças desta nova apresentação com sua própria companhia.
"Decidi refazer de forma independente, com meu grupo de teatro, seguindo a mesma proposta de musical, envolvendo dança, música e teatro, porém com elenco menor, de seis pessoas, e outras mudanças na adaptação. Vi que em 2019 a receptividade do público foi muito boa, além de que a obra sempre foi uma das minhas favoritas da literatura nacional”, detalha.
Sobre as adaptações, ela revela: "A história se passa nas lembranças de Bentinho, já mais velho, solitário e amargurado, conhecido como Dom Casmurro. Essa ideia de ser 'assombrado por lembranças do passado' foi o guia para toda a criação. O espetáculo todo tem esse aspecto, desde a estética à forma com que a narrativa se dá em cena, onde tudo vai tomando vida em torno dele, com o Dom Casmurro assistindo e muitas vezes participando das próprias memórias. Ninguém sai de cena, todos ficam no palco, do começo ao fim."
Há 22 anos, Eurico subia em um palco para se apresentar pela primeira vez. Ele conta que, desde então, busca participar de processos que sempre o instiguem, tendo sido neste caminho que conheceu Aretha, com quem construiu uma conexão "instantânea".
"Sempre discutimos muito sobre o que significa trabalhar com arte e como é fazer isso no Brasil, em Fortaleza. A gente queria produzir algo que envolvesse nossa realidade de alguma forma. 'Casmurro' parte para um âmbito de brasilidade com uma de nossas maiores histórias acompanhada da musicalidade do samba e da bossa nova. Tenho muito claro para mim o poder que a arte tem em fazer refletir e sentir, tanto para quem faz como para quem assiste. Eu definitivamente saio transformado depois de um processo assim e espero que a plateia também sinta algo com a troca ao nos assistir", finaliza o ator.
Casmurro
Todo mundo tem uma história de medo para contar e o sobrenatural é parte da vida de cada um ou das famílias. Alguns convivem com o assombro das manifestações ou rezam para se libertar das experiências inesperadas. Saiba mais sobre “Memórias do Medo” clicando aqui