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Joca Terron explora selvagerias sociais em livro ambientado em matadouro
Vida & Arte

Joca Terron explora selvagerias sociais em livro ambientado em matadouro

Novo romance de Joca Terron mescla precarização do trabalho com crueldade em abatedouro para tratar de selvagerias sociais
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Escritor e jornalista cuiabano Joca Terron lançou em julho o livro
Foto: Renato Parada/Divulgação Escritor e jornalista cuiabano Joca Terron lançou em julho o livro "Onde Pastam os Minotauros"

No poema "Um boi vê os homens", Carlos Drummond de Andrade elabora o trecho: "E ficam tristes/ E no rastro da tristeza chegam à crueldade". Em certo momento de sua trajetória, a zootecnista americana Mary Temple Grandin, que atuou para criar práticas menos abusivas na pecuária, afirmou que "gado apavorado não se comporta direito".

Em comum, os trechos acima destacam sentimentos relacionados aos modos como animais podem ser tratados pelos humanos e convocam leitores à reflexão: até que ponto vão as consequências da crueldade? As frases também surgem como epígrafes de "Onde Pastam os Minotauros", novo livro do escritor cuiabano Joca Reiners Terron.

Lançada em julho pela editora Todavia, a obra aborda selvagerias de uma realidade social do capitalismo ao ser ambientada em um abatedouro em uma cidade no Mato Grosso. O romance recorre às histórias de quatro funcionários para explorar dores humanas e animais em um local onde a morte é o cheiro mais presente e a precariedade se destaca.

O romance é desenvolvido em um dia marcante: a última segunda-feira do ano. O suspense toma conta da narrativa ao apresentar as realidades dos funcionários diante das condições de trabalho em um matadouro. Eles sofrem com a precarização de seu ofício.

Crente, um dos protagonistas, trabalha no ramo desde criança, pois sua família tinha um pequeno açougue. Entretanto, a situação passou a mudar quando um matadouro chegou na região e comprou todos os açougues. Agora, os funcionários têm empregos temporários e não possuem mais garantias trabalhistas, pois o matadouro se especializou em abate religioso e o local só aceita funcionários muçulmanos.

Os contextos das angústias dos personagens são diferentes. Voltando ao trabalho após ter sido preso, Cão reflete sobre os ciclos sangrentos que condenam homens e bois às suas tristes existências. Lucy Fuerza, sua namorada, sonha com o tempo em que sua vida melhorará enquanto se prepara para receber uma comitiva estrangeira que fará uma vistoria no abatedouro.

Crente sofre com o luto da perda de sua esposa e observa a filha em um quarto de hospital onde está internada. Ele sente culpa por contaminá-las com o vírus da Covid-19 após ter saído de casa todos os dias para trabalhar. Noites em claro são a tônica de sua rotina na unidade de saúde.

Ahmed, por sua vez, enuncia versículos para Alá ao degolar touros. Ele é responsável pelo abate religioso dos bois e sofre com a perda de sua família, assassinada na Palestina por forças israelenses. O destino dos personagens dependerá do que acontecer nesta segunda-feira e um plano é elaborado para que fujam dessa realidade.

Algumas experiências que atravessaram a vida de Joca Terron serviram como pontos impulsionadores para o livro. Um deles foi o fato de seu avô ter tido um matadouro e, na infância em Cuiabá, o escritor chegou a passar horas vendo abate de animais. A temática já havia ecoado em outros textos de sua autoria, como em um fragmento do romance "Noite Dentro da Noite" (2017).

Outro fato remeteu à outra profissão de Joca Terron: a de jornalista. Há cerca de 15 anos, ele teve a oportunidade de fazer uma reportagem sobre um matadouro em Mato Grosso que estava se especializando em abate halal - forma na qual animais são abatidos para consumo de muçulmanos com intuito de minimizar o sofrimento do animal. Apesar de não ter conseguido veicular a reportagem, a ideia ficou: "Isso ficou palpitando ao longo desses anos na minha cabeça e o romance, de certa forma, é uma resposta a isso", diz o autor em entrevista ao O POVO.

Para além da desvalorização trabalhista, o livro avança em outras questões, como a "dor moral" enfrentada por pessoas que trabalham no abate industrial de animais. Joca Terron enfatiza o sofrimento de animais a partir do abate "grotesco e violento" e levanta reflexões sobre os impactos dessas rotinas também nos funcionários.

"Há uma passagem no livro em que o Cão indica que nós sabemos quanto viveria um animal doméstico como um gato ou um cachorro, mas nunca saberíamos quanto viveria um boi, porque ele é abatido no auge da juventude, quando a carne ainda está macia", pontua o escritor.

Na obra, a "dor moral" é acrescida para Cão, pois ele cumpre o papel de manejador, ou seja, é responsável pela condução tranquila do gado antes do abate, para que o animal não fique estressado. No caso do protagonista, esse sofrimento se eleva, pois desenvolveu um amor por esses seres.

"A nossa indústria de abate bovino é uma coisa gigantesca. São muitos animais mortos ano a ano, e a gente não sabe o que essas pessoas que estão envolvidas no abate sentem. Como elas convivem com essa mortandade diária, cotidiana?", questiona Joca Terron.

Diante de tanta crueldade e violência, "Onde Pastam os Minotauros" também provoca reflexões sobre a "bestialização das pessoas": "É sobre essa cegueira que nos impede de perceber que somos, no fundo, apenas máquinas de carne empurradas na direção do abismo. Há uma espécie de cegueira ou um autoengano que nos coloca em uma situação que nos impede de enxergar a verdade e que nos causa muito sofrimento. Um sofrimento que nos conduz à crueldade". 

 

Capa do livro
Capa do livro "Onde Pastam os Minotauros", de Joca Terron

Onde Pastam os Minotauros

  • De Joca Terron
  • Editora Todavia
  • 184 páginas
  • Preço médio: R$ 69,90
  • Acompanhe o autor: @jocaterron

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