Ubaldo Vaqueiro, personagem central da série "Cangaço Novo", é descrito pelo intérprete Allan Souza Lima como "implosão". Após trabalhar como bancário em São Paulo, o personagem se encontra em uma encruzilhada quando busca solucionar entraves familiares. Ele decide sair de São Paulo para retornar à fictícia cidade de Cratará, situada no Ceará, depois de descobrir uma herança deixada pelo pai, o cangaceiro Amaro Vaqueiro.
Esta, entretanto, não é a única surpresa. Ao chegar no pequeno município, Ubaldo se depara com as próprias irmãs, Dinorah (Alice Carvalho) e Dilvânia (Thainá Duarte). A semelhança com o patriarca logo transforma o homem em um símbolo na cidade, ao passo em que ele se converte no líder de uma quadrilha especializada em ataques a bancos.
Enquanto desenrola a dinâmica emocionante dos irmãos Vaqueiros, baseada na história de Valdetário Carneiro, a trama desenvolvida por Eduardo Melo e Mariana Bardan mostra a dualidade dos intitulados novos cangaceiros. "A gente fez uma linguagem hiper-realista, a gente está vivendo aquilo ali. Me jogar de cabeça, solidificou e potencializou o processo", elabora o ator ao falar sobre a produção do conteúdo disponível na plataforma de streaming Amazon Prime Video.
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A narrativa produzida por Aly Muritiba e Fábio Mendonça alavancou em nível global e conquistou o Top 10 dos títulos mais assistidos da plataforma em 49 países, em localidades também divididas entre América Latina, Ásia e África. Já no Brasil, a série se tornou quase unanimidade entre os usuários do streaming e acumula boas críticas desde a estreia, realizada no mês de agosto. "Pequenos expoentes acontecem de anos em anos. A gente veio lá atrás com Central do Brasil, Cidade de Deus, Tropa de Elite. Acho que sim, criticamente falando, o que a gente está entendendo é que existe esse novo marco do audiovisual do streaming brasileiro que 'Cangaço Novo' está representando".
Quando desenvolve o pensamento acerca do próprio personagem, Allan destaca o auxílio da preparadora Fátima Toledo e das companheiras de cena já citadas para trazer uma persona tão complexa à realidade. Afinal, Ubaldo pode ser visto como alguém "sem identidade", à sombra de Dinorah - a explosão dentro do enredo. Ao mesmo tempo, explicita bem os distintos lados presentes nos embates criminosos similares. "A gente está falando sobre moralidade, mostrando que não existe caráter nos heróis. A gente está mostrando uma potência, uma representatividade gigante, com o trabalho que a Alice fez. A gente está falando sobre encontros, sobre movimento social", elenca o artista.
Todos esses pontos são necessários para dimensionar uma realidade complexa que atravessa a ficção. A história faz o retrato de criminosos que organizam quadrilhas de assalto a bancos, principalmente em pequenos municípios do Nordeste, com ações de impacto. Com base nestas características, eles são referidos como "novo cangaço" e seguem com atuação presente no País. "Se tornou muito recorrente assaltos baseados na chamada invasão de cidade, com uma violência ostensiva e abordagem truculenta. O termo que pegou nas reportagens e com os delegados, na época, foi novo cangaço", explica a professora-doutora Jânia Perla Diógenes de Aquino, pesquisadora do Laboratório de Estudos da Violência (LEV - UFC).
Ela informa que estes crimes voltaram a ser comuns no Nordeste por volta dos anos 2000, mas tomaram projeção nacional a partir da década de 2010. O aumento também pode ser motivado pelo avanço da inteligência artificial e da segurança em grandes instituições, que dificultaram ataques mais discretos e silenciosos. "Na pesquisa a gente discute a viabilidade do termo 'novo cangaço'. Acaba associando os crimes a uma série de estigmas ligados ao movimento do cangaço, à questão do anacronismo, de crimes rudimentares, como se essas ações tivessem uma marca de atraso. E é tudo o que essas ações não são. Você tem um planejamento elaborado, quadrilhas interestaduais, logística e organização que caracterizam os crimes urbanos", complementa.
A profissional pontua que, entretanto, não há como menosprezar a disseminação da categoria que já é compreendida pela população. "A analogia com o cangaço se dá pelas características do sitiamento de cidades para fazer saqueamento, os habitantes sendo rendidos, a abordagem truculenta e uma postura audaciosa. Nos dois casos, existe uma inversão social".
O passado, entretanto, também pode servir como símbolo de valor dentro das organizações. "Algumas dessas quadrilhas se chamavam de seguidores de Lampião. Também tem casos de integrantes remanescentes da pistolagem, da briga de família por terras. No novo cangaço você tem uma diversidade de personagens. As pessoas associadas à pistolagem ou ao cangaço, geralmente, é colocado como um signo de valentia, como se adicionasse à imagem da quadrilha um elemento a mais", acrescenta Jânia.
Trazer este fenômeno social para o audiovisual, sinaliza a professora, é ampliar o entendimento sobre o assunto. "A gente está falando de bandidos perigosos, que não exitam em matar pessoas, mas a gente não pode perder de vista que são pessoas que têm uma história. Quando a gente animaliza qualquer segmento, toda a sociedade desumaniza um pouco. Ter produções bem elaboradas que resgatam essa problemática social sem esconder a gravidade dos crimes violentos, mas apresentando essa dimensão humana, penso que é válido".
O cangaço no audiovisual
Os contornos do cangaço, tanto aquele oriundo do século XIX, quanto o mais recente, também ganham novos horizontes nas produções. A plataforma de streaming Globoplay tem data prevista para o lançamento da novela "Guerreiros do Sol", com destaque para os relacionamentos amorosos do bando de Lampião e Maria Bonita. A novela será guiada pelo ponto de vista da protagonista, vivida pela atriz Isadora Cruz. Já o Star irá lançar "Maria Bonita", nova série original estrelada por Ísis Valverde.
A popularidade não é novidade. O tema já tem destaque no audiovisual há, pelo menos, seis décadas. As primeiras menções aconteceram a partir de 1917 e os primeiros filmes sobre o tópico surgiram entre as décadas de 1920 e 1930, a exemplo de "Filho Sem Mãe" (1925) e "Sangue de Irmão" (1927), ainda durante o movimento. Em 1936, o cinegrafista Benjamin Abrahão retratou cenas do grupo de Maria Bonita no filme "Lampião, o rei do cangaço".
Um novo impulso acontece com o lançamento de "O Cangaceiro" (1953), de Lima Barreto, que completa 70 anos em 2023. A obra cinematográfica foi expoente do gênero "Nordestern", uma mistura do "western" estadunidense com personagens brasileiros. O termo, batizado pelo crítico Salvyano Cavalcanti de Paiva, abrange o chamado "bangue-bangue à brasileira". "O western se consolidou já no início da criação do cinema americano e já tinha um alcance mundial na década de 50, quando passou a ser difundido em larga escala ao redor do mundo", desvenda o professor associado IV do Curso de Graduação em Cinema e Audiovisual e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará (UFC), Marcelo Dídimo, autor do livro "O Cangaço no Cinema Brasileiro" (2010).
A partir do êxito, a produtora Vera Cruz investe no modelo como padrão cinematográfico. "Foi buscar no gênero mais famoso da época uma espécie de fórmula para ser aplicada a partir de personagens que habitaram o Nordeste brasileiro. É com isto que eles fazem 'O Cangaceiro', foi uma forma de 'abrasileirar' o cinema que fazia sucesso mundialmente", contextualiza Marcelo. Com roteiro de Rachel de Queiroz, o filme foi premiado nas categorias Melhor Filme de Aventura e Melhor Trilha Sonora no Festival de Cannes.
O Nordestern, portanto, passa a ser mais explorado nas décadas seguintes, a partir de 1960. Em artigos acadêmicos, assim como na obra literária, Marcelo traça a linha do tempo do gênero no País. A notoriedade veio com produções como "Deus e o Diabo Na Terra do Sol" (1964) e "O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro" (1969), de Glauber Rocha. "Dá para dizer que foram mais de 30 filmes em 20 anos, apesar de não ser um número tão expressivo para um gênero cinematográfico, mas, em termos de produção no mercado cinematográfico brasileiro, é relevante. A temática Nordeste/sertão/cangaço sempre teve presença muito forte", contesta.
Marcelo destaca a contribuição do cineasta Carlos Coimbra, "quem mais produziu filmes sobre o cangaço". O assunto é expandido nas seguintes décadas por meio da pornochanchada, como "Kung Fu Contra As Bonecas" (1975), e da comédia. "O gênero sobrevive até 1983, quando foi feito o 'Cangaceiro Trapalhão' (1983), com Renato Aragão, e que vai acompanhar a série "Lampião e Maria Bonita" (1982), da TV Globo. O cinema do Brasil entra numa crise séria até meados da década de 90, mas o gênero retorna com a retomada. A partir de 2010 com uma produção mais tímida, mas com um olhar atualizado", sintetiza o autor.
Ligação com a cultura popular
Além do audiovisual, o cangaço também foi pauta para os mais variados produtos artísticos, desde cordéis até músicas. Esta ligação entre o fenômeno social e político e a cultura popular é estudada pelo historiador Vagner Ramos, doutorando em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Antes de falar sobre esta interseção, porém, é necessário reforçar o contexto histórico.
O levante do cangaço acontece na virada da República Velha, entre o século XIX e XX. Durante o período de início do Estado Novo, por volta de 1890, começa a atuação dos "cangaços independentes", bandoleiros violentos que andavam por regiões nordestinas. "O cangaço foi um modo de vida muito peculiar, que teve diversidade de características. Se por um lado as imagens dos cangaceiros foram vistas como bárbaras em quadros oficiais do Estado, porque eles eram 'fora da lei', em contrapartida houve uma intensa leitura de outros suportes considerados populares, as oralidades, os cordéis, o artesanato, a dança. Lançaram um olhar de interesse popular, uma vontade de conhecimento também mais intelectualizado, por isso que a literatura, o folclore, a ciência criminal e tantos outros saberes científicos também se interessam", relata Vagner.
Até o considerado fim do conhecido cangaço, marcado pela morte do bando de Lampião e Maria Bonita, em 1938, e firmado com a morte do cangaceiro Corisco em 1940, o movimento foi constantemente abordado pelos meios de comunicação de massa, principalmente pela literatura de cordel, documentos fundamentais no registro histórico das ações. "O movimento se populariza no momento do próprio fenômeno, porque interessa muitas camadas populares e eruditas. Mesmo cercado de contradições, o tema continua sendo recorrente nas ideias do que é o povo brasileiro. É interessante perceber como a ideia do Nordeste vai ser criada e forjada a partir destes fenômenos".
O historiador aponta que as releituras e representações do cangaço também funcionam como uma forma de "atualizar o passado" e ressignificar a memória, tendo em vista que as concepções variam de acordo com o passar dos anos. "Uma coisa é um testemunho dado logo após o final do cangaço, quando esse tema era um tabu. Outra situação é o testemunho no período da ditadura militar, quando a ideia já ganhou outros contornos. Já não é mais visto como algo bárbaro e primitivo, mas como um tipo de experiência social que pode ajudar a interpretar outros caminhos e conflitos da sociedade. Da mesma forma, é diferente um testemunho no período da democracia, que esses depoimentos passam a ser vistos como uma história viva, um patrimônio dessa cultura".
Estas distintas camadas fazem com que esse "tema sensível na história brasileira, que resulta em conflitos em distintas dimensões sociais, territoriais e morais" continue sendo revisitado. O direcionamento de olhar ao tema é considerado por Vagner como uma reavaliação do passado, uma espécie de rememoração coletiva, impulsionados por datas redondas como os 80 anos da morte de Lampião e Maria Bonita, em 2018.
"Essas novas produções não trazem só uma visualidade de imagem sobre o cangaço, mas uma abordagem sobre determinados territórios do sertão que tem uma presença muito forte do passado do cangaço. Esse passado vai se entrelaçando à cidade, à política, às famílias, e nós conseguimos ver outras zonas de conflito que vão além dessa ideia que o cangaço se resume a heroísmo ou banditismo, é bem mais complexo do que leituras genéricas", arremata.
Entrevista
A entrevista completa com o ator Allan Souza Lima, intérprete de Ubaldo em "Cangaço Novo", estará disponível no Vida&Arte desta segunda-feira, 11
Memórias do Medo: confira o trailer do novo filme do O POVO+:
Todo mundo tem uma história de medo para contar e o sobrenatural é parte da vida de cada um ou das famílias. Alguns convivem com o assombro das manifestações ou rezam para se libertar das experiências inesperadas. Saiba mais sobre “Memórias do Medo”https://vimeo.com/user107328902/review/840648890/8ae35f0baf clicando aqui