Claudia Schiffer, Naomi Campbell, Cindy Crawford e Christy Turlington: as supermodelos estão de volta. Sucesso das passarelas nos anos 1990, elas eram vistas como verdadeiras celebridades e ditavam o padrão de beleza da época: ser magra e alta.
Agora, as top models estão de volta, participando de desfiles nas principais semanas de moda, estrelando campanhas publicitárias e apresentando projetos audiovisuais. No entanto, o retorno das celebridades tem pautado debates: ainda há espaço para padrões de beleza?
A magreza extrema se popularizou quase no mesmo período em que essas modelos atingiram o auge do sucesso, entre a década de 1980 a 1990. Estilos como "heroin chic" marcaram o período. Trata-se de uma estética que promove aparência magra e características físicas como olheiras profundas - inclusive, a estética voltou a viralizar neste ano.
Enquanto movimentos como "Body Positive" e "Corpo Livre" ganharam força nos últimos anos, incentivando mulheres a se libertarem de pressões estéticas, especialistas observam que grandes marcas da indústria da moda abandonaram o discurso inclusivo e voltaram a priorizar corpos magros.
No Brasil, há esforços conscientes para promover desfiles mais diversos. Na São Paulo Fashion Week (SPFW), por exemplo, as passarelas já viram a modelo plus size Letticia Munniz e Rita Carreira; a modelo trans Alexia Duttra; a modelo descendente de tupis Dandara Queiroz; e a modelo Giulia Dias, que tem cicatrizes no rosto. De acordo com Joel Ponciano, dono da agência cearense de modelos, Pride Casting, o mercado brasileiro é mais aberto à diversidade do que o internacional.
Após a temporada de desfiles das principais semanas de moda estrangeiras, em outubro, especialistas observaram a ausência de corpos mais diversos. Marcas que antes se mostravam apoiadoras da luta contra distúrbios alimentares e da pressão estética promovida pela indústria voltaram a priorizar corpos magros, altos e brancos.
"O mercado internacional está um passo atrás do Brasil. O Brasil já está alçando novos lugares", afirma Joel. Ele cita, por exemplo, a Casa de Criadores, um dos principais eventos de moda do País, que acontece em São Paulo. Na última temporada, a Pride teve duas modelos desfilando no evento, sendo uma delas Isabella Poles, uma mulher transgênero.
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Joel conta que tem enfrentado dificuldades para lançar a modelo no mercado internacional, mesmo com ela atendendo todos os padrões de altura e medidas exigidos pela indústria. Ele acredita que ainda há barreiras para Isabela desfilar nas passarelas estrangeiras por ser transgênero. "Hoje [no Brasil], nós já temos estilistas e profissionais mais abertos para a diversidade, enquanto em outros lugares não existe essa preocupação", pontua.
Ele ainda afirma que mesmo o mercado sendo um pouco mais aberto à diversidade nos dias de hoje, em comparação às décadas passadas, ainda há algumas exigências. "A modelo precisa ter medidas específicas para ser considerada plus size, não é só vestir 54. Ela precisa ter tamanho de cintura específico, um tamanho de busto específico. Então eu vejo que ainda há muito para ser conquistado", ressalta.
Gerenciando uma agência onde 95% dos modelos são da comunidade LGBTQIAP+, Joel revela que ainda é necessário atender a padrões da indústria para conseguir destaque. "Infelizmente, a gente ainda tem que se submeter a alguns padrões que o mercado ainda coloca. Eu prezo muito para que o mercado note não só nossa causa, mas também a questão de corpos… Eu, por ser uma pessoa gorda, eu gosto muito de ter essa diversidade de corpo, de ideias e de expressões dentro da Pride", destaca.
Por trás das passarelas
Isabella Poles tem 27 anos e há 5 anos trabalha como modelo. Hoje, ela é agenciada pela Pride Casting e enfrenta os desafios de conquistar espaços sendo uma mulher transgênero. A modelo também tem o corpo cheio de tatuagens, mas observa que essa característica é mais aceita do que a identidade de gênero.
"Eu sinto que a imagem da mulher transexual ainda não é compreendida pelo mercado. Se busca uma mulher transexual que pareça uma mulher cisgênero, sendo que a imagem de uma mulher transexual é única, nossos traços são únicos. É uma nova vertente do que é ser mulher, na minha perspectiva", pontua.
Ela observa que há uma preocupação dos clientes em saber se a modelo transexual passou por cirurgia de redesignação de gênero. "Ser operada ou não faz diferença? No momento da passarela não vai fazer diferença se eu sou redesignada ou não", pondera.
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Isabella também destaca que ainda há cobranças com relação a manter um corpo magro. "Eu vejo que as pessoas se cobram demais em relação a atender esse padrão de magreza. Cada vez mais as meninas vêm fazendo coisas absurdas para se manter magra e eu acho que isso é muito delicado, porque o nosso trabalho é trabalhar com a imagem e em alguns momentos, parece que a imagem é tudo que importa. A saúde mental, que é uma coisa que às vezes não se fala tanto nesses trabalhos, no mercado da moda, ela é deixada de lado quando entra nesse aspecto de cobrança sobre o corpo", comenta.
"Eu vejo que aquele argumento antigo, que modelo é só um cabide, que modelo tem que estar disponível para fazer o sacrifício que a agência ou cliente pediu, esse argumento tem voltado. Eu vejo essa pressão externa nos meus colegas de trabalho, por exemplo", ressalta.
Samille Campelim, de 23 anos, tem menos de 1 ano de experiência como modelo, mas já vivencia as pressões estéticas do mercado, principalmente porque ela não se considera nem magra e nem plus size. Ela acredita que a indústria tende a colocar modelos em categorias e há uma certa rejeição quando alguém não se encaixa em nenhuma delas.
"Uma vez fui pra uma aula de passarela e o professor perguntou se eu ia querer continuar nessa área do plus size, sendo que eu não sou um corpo plus size, mas eu também não sou um corpo magro. Por ele ser um professor de passarela, eu esperava que ele soubesse identificar corpos", relata.
A modelo também conta que as próprias marcas não respeitam as medidas de modelos não-magras. "Uma coisa que me incomoda nesse nessa área é que eu passo as minhas medidas para meu agente, passo meu manequim, o tamanho que eu visto e quando as marcas vão atrás, ela já sabem que eu tenho aquele tamanho, só que quando eu vou para as fotos as roupas sempre são menores. Se eu visto um GG, quando eu chego lá tem um M para eu vestir e eu que me vi ele para aquela peça caber em mim", relata.
Luan Vinycius, de 22 anos, trabalha como modelo há cerca de 1 ano e meio e é não-binário. A pressão e preconceito presentes no mercado já fez com que ele abrisse mão da sua identidade por um tempo.
"Por mais que a moda se venda como diversa, inclusiva e 'cool', a indústria de Fortaleza ainda continua extremamente obcecada pelo padrão de beleza eurocêntrico, binarista e heterocisnormativo. Assim como todo o restante do mercado de trabalho", afirma.
"Essa restrição fez com que eu, por um tempo, abdicasse da minha identidade e expressão de gênero na tentativa de ter mais chances de ser aceito na indústria e poder realizar meu sonho de trabalhar como modelo. Me enquadrando assim nas respectivas caixas e atribuindo-me os rótulos aos quais eles acham mais convenientes aos nossos corpos", relata.
Gordofobia: um problema além das passarelas
De acordo com a pesquisadora e professora do curso de design de moda, Cynthia Holanda, foi nos anos 1980 que a supervalorização da magreza teve início. Ela afirma que o estabelecimento desse padrão estético motiva o aumento de distúrbios alimentares, como anorexia e bulimia. Portanto, o retorno da valorização da magreza nas passarelas pode trazer esses problemas à tona novamente.
Todavia, a pesquisadora destaca que a gordofobia vai além do casting de modelos e se perpetua nos tamanhos de roupas disponibilizados nas lojas. "Quando a gente chega nas lojas o tamanho 42 já é considerado plus size. Isso valoriza ainda mais que as modelos sejam magras, porque o tamanho 42 já é considerado uma pessoa gorda", pontua.
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Cynthia também afirma que a gordofobia é um problema instalado até mesmo nas instituições de ensino, pelo menos em Fortaleza. Com experiência em algumas faculdades da capital, ela declara que falta a inclusão de modelagens maiores nas disciplinas.
"O que é que os professores de cursos de moda ensinam? A modelagem para mulher trabalha até o tamanho 40 e para um homem até o tamanho 42. Não há nenhuma disciplina de modelagem plana para tamanhos grandes. E aí, se a gente não tá formando nem as pessoas que vão trabalhar para criar a moda para pessoas diversas, como que a gente vai fazer o restante da população aceitar?", reflete.
Apesar dos desafios da indústria, Cynthia observa que cada vez mais corpos diversos vêm sendo incluídos, principalmente pela moda autoral cearense, mesmo que de maneira lenta. "Eu acho que a gente tem um longo caminho, mas alguma coisa a gente já conseguiu", destaca.
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