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Revisão do Brasil: "Casa-Grande & Senzala" segue em debate 90 anos depois
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Revisão do Brasil: "Casa-Grande & Senzala" segue em debate 90 anos depois

Publicado há 90 anos, "Casa-Grande & Senzala" segue sendo revisitado por pesquisadores e intelectuais. Nesta edição, o V&A reúne olhares sobre o legado da obra
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Homens e mulheres trabalham no terreiro de secagem de café; a imagem é de Marc Ferrez, que nasceu em 1843 no Rio de Janeiro. Ele registrou meio século de transformações ocorridas no País (Foto: Marc Ferrez/ Acervo Instituto Moreira Salles)
Foto: Marc Ferrez/ Acervo Instituto Moreira Salles Homens e mulheres trabalham no terreiro de secagem de café; a imagem é de Marc Ferrez, que nasceu em 1843 no Rio de Janeiro. Ele registrou meio século de transformações ocorridas no País

O locutor de "O Outro Brasil Que Vem Aí" (1926), escrito pelo antropólogo, sociólogo, poeta e jornalista Gilberto Freyre (1900 - 1987), diz ouvir as vozes, ver as cores e sentir os passos de um País "mais tropical/ mais fraternal/ mais brasileiro". O poema foi publicado na 48ª edição do livro "Casa-Grande & Senzala", um dos principais estudos de Freyre que chega aos 90 anos em 2023. A obra literária propõe a elaboração acerca da formação de uma sociedade "agrária, escravocrata e híbrida" e ultrapassa nove décadas, entre críticas e controvérsias, sob a demanda de releituras e novas interpretações.

Para falar sobre o Brasil traçado nos versos acima, é necessário contextualizar a conjuntura nacional na qual a publicação foi lançada. Após a crise mundial de 1929, a economia sofreu queda na exportação e a política foi tomada pelo governo provisório de Getúlio Vargas (1930 - 1934). Entre os demais recortes, o período marca o enfraquecimento das oligarquias estaduais e o início da transição para um modelo industrial. No início da década de 1930, Gilberto atuou como chefe de gabinete do governador de Pernambuco, Estácio Coimbra (1872 - 1937), e foi exilado em 1933, quando parou em Portugal depois de passagem como professor convidado da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, onde morou após ter recebido educação em colégios americanos na juventude.

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Este foi o momento da escrita de "Casa-Grande & Senzala", cujo subtítulo era "Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal". O volume literário surge após profundas pesquisas antropológicas e abrange cinco capítulos (uma introdução; um sobre indígenas; um sobre o colonizador português e dois sobre o escravo negro). Logo, o texto já reverberou pela estruturação narrativa então considerada inovadora, com distanciamento da academia e aproximação da literatura. "Gilberto vai quebrar essa dimensão e trazer uma literatura mais revolucionária, no sentido de mudanças do sistema (literário)", explica a antropóloga e escritora Fátima Quintas, ex-presidente da Academia Pernambucana de Letras (APL) e especialista na obra do autor.

Neste contexto, ela continua, também houve a ascensão de nordestinos na área num momento de revolução do romance social, com o levante de nomes como Rachel de Queiroz (1910 - 2003) e Jorge Amado (1912 - 2001). "Fez a gente evoluir no sentido de trazer uma leitura bem mais avançada", complementa. A contista relata que conviveu com o autor e destaca o diferencial metodológico dele. "Primeiro, ele atualizou a literatura da época. Teve uma metodologia aberta voltada ao homem, não fechada, acanhada. E, além do mais, ele trabalhou a escolha do tema voltado para a rotina. Ele queria que a literatura se adaptasse ao homem".

Para o professor de Ciências Agrárias do Centro de Ciências Agrárias (CAA) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Cauby Dantas, o momento revela um "aspecto interessante" desde a interseção entre os ensaios sociológicos e antropológicos, elaborada com a inovação do uso de fontes como recortes de jornais, contos e documentos. "Outros aspectos inéditos são a renovação da linguagem, a distinção entre raça e cultura, assim como a maneira que ele operacionaliza o conceito de cultura. Também tem a centralidade da família, que a gente chama de patriarcal, como unidade colonizadora; a variedade de temas nunca tratados na antropologia; o estudo da vida privada. Todos esses aspectos somados, que tento resumir, foram responsáveis pela repercussão inicial da obra", elabora o docente.

Dantas, que também integra o Núcleo de Estudos Freyreanos na Fundação Gilberto Freyre, pondera que o texto aborda as "circularidades culturais" sobre a formação do Brasil. Porém, a visão de Freyre recebe críticas pela romantização da miscigenação e o mito da democracia racial - supondo que a relação entre portugueses, indígenas e africanos era harmoniosa - e o tom nostálgico do passado senhorial relatado em trechos. "São críticas que fazem sentido e estão sendo muito revisitadas. Acho que o problema é quando se torna redutora", opina.

O professor ainda diz que a análise da publicação deve ser feita levando em consideração os próximos títulos lançados pelo autor, sendo eles "Sobrados e Mucambos" (1936) e "Nordeste" (1937). "É uma agenda de pesquisa perene que trata de gênero, família, sexualidade, ecologia, cultura, raça. Todos esses temas colocados continuam no cerne da preocupação dos intelectuais contemporâneos, não podem ser estudados sem que, em algum momento, você instaure um diálogo, nem que ele seja crítico. Minha função é chamar as pessoas para ler", pontua.

Para o professor Hilário Ferreira, graduado em Ciências Sociais e doutorando em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC), a criticidade é necessária para a consulta e revisitação de "Casa-Grande & Senzala". Apesar de identificar que a produção tenha importância num certo contexto histórico, ele não vê o livro como uma grande referência atual, principalmente pela estruturação das questões raciais brasileiras.

O docente rememora que, à época do lançamento, as referências de identidade brasileira eram fundamentadas em conceitos de raça fundados no século XVIII com o objetivo de "legitimar a educação europeia" sobre outros povos. "Gilberto passa a analisar as relações raciais e sociais no Brasil. Antes de 1930, tudo que era referente à miscigenação era rejeitado e inferior. Gilberto contribuiu com o olhar para si através do espelho e ver positivo. Ele vai trazer um olhar positivo da mestiçagem, rompendo a visão negativa com base nas teorias raciológicas do século XIX", explica.

Nesse sentido, Hilário menciona a frase do sociólogo Antonio Candido (1918 - 2017) que implica que "existe um Brasil antes e depois de 'Casa-Grande & Senzala'", devido à percepção positiva da identidade brasileira num processo de nacionalização. Entretanto, ele acrescenta que o antropólogo erra na abordagem de harmonia entre senhores e escravos. "Há uma construção (no livro) de estas relações foram harmoniosas, como se houvesse um consentimento, mas isso não acontecia. A historiografia crítica vai mostrar que foram muito violentas, isso não é discutido. Alguns autores falam que o termo 'democracia racial' não aparece no livro. Não aparece na obra brasileira, mas na obra americana está presente".

Ele também menciona que o autor falha ao "esconder o conflito" entre raça e classe. "Não dá para falar sobre o Brasil sem levar a condição dialética entre classe, raça e gênero. É um dos grandes responsáveis por essa dificuldade em compreender as contradições é essa visão harmoniosa e conjuntural do povo brasileiro". Por isso, o historiador afirma que é preciso uma preparação crítica antes da leitura. "Penso que as pessoas, pela sedução da obra, devem ser alertadas dessas problemáticas. É interessante ler até para criticar, porque tem pessoas que condenam sem ler. E, ao condenar ele, condenam toda a obra. Não concordo com isso. Enquanto professor, ao passar esse livro, faria uma preparação crítica".

Contudo, ele enfatiza a qualidade da escrita do autor e indica que a atuação do profissional não está restrita ao título de 1933. "A grande contribuição dele é entender a formação social do Brasil. Você tem 'Casa-Grande & Senzala' que discute o período colonial, 'Sobrado & Mocambos' que pega o período imperial e 'Ordem e Progresso' que pega o período republicano. Três obras que têm a função de analisar a formação social do Brasil", menciona alguns exemplos.

FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 21-09-2023: Entrevista com gestor cultural Gilberto Freyre Neto no Jornal O Povo. (Foto: Samuel Setubal)
FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 21-09-2023: Entrevista com gestor cultural Gilberto Freyre Neto no Jornal O Povo. (Foto: Samuel Setubal)

De avô para neto

Da infância ao lado do "Velho Freyre" no bairro de Apipucos, no Recife, o gestor cultural Gilberto Freyre Neto guarda ensinamentos e provocações. "Eu estou (inserido) na área cultural desde que eu nasci. Faz parte da minha formação o contato que eu tive cotidianamente com o 'Velho Freyre'. Quando ele faleceu, eu tinha 13 anos. Tive uma relação de neto para avô fantástica", celebra o pesquisador, administrador, coordenador de projetos e consultor.
Com passagens pela gestão da Secretaria de Cultura e da Secretaria de Relações Internacionais do Governo de Pernambuco, Gilberto transpôs para própria vida, ao longo da carreira, alguns pilares do legado do avô: o olhar para a formação cultural e a atenção às relações do Brasil com os povos de diferentes países.
"Hoje estou com 50 anos de idade e acredito que tenho um olhar bem mais maduro, não só ao 'Casa-Grande & Senzala', mas ao legado de Gilberto Freyre de maneira geral. Eu continuo com a mesma percepção que eu escutava do meu pai quando ele dizia que 'Casa-grande & Senzala' é uma obra criticada por não ser lida", aponta o gestor.
Com ampla atuação à frente da Fundação Gilberto Freyre por mais de duas décadas, o neto narra ter vivenciado muitos ciclos de contestações à obra do avô. Para ele, essa "fortuna crítica" ajuda a ampliar os debates de temas levantados por Freyre há 90 anos. Segundo o pesquisador, porém, há uma "manutenção" do viés das críticas ao longo das décadas, fato que advém da falta de contato dos leitores com a obra propriamente dita: "O Brasil sofre da não-leitura de Casa-Grande & Senzala".
Ao longo de quase 100 anos, desde o lançamento em 1933, a publicação tem sido tensionada principalmente pela leitura que faz da miscigenação na formação do País. Ao longo das mais de 700 páginas que compõem a obra, além da violência imposta ao povo negro escravizado pelos "senhores brancos", Freyre também destacou a força cultural que brotou desse choque entre realidades.
"Uma crítica que a gente escuta sistematicamente é de que Gilberto romantizou a escravidão e que não existem passagens em 'Casa-Grande & Senzala' que tratam dos grandes males que a escravidão, mas 'Casa-Grande & Senzala' talvez seja a obra que mais fala sobre isso", pontua Gilberto Freyre Neto, evidenciando que "a violência da escravidão na sociedade brasileira se reflete no nosso cotidiano hoje".
Ele detalha: "Se você pegar as últimas 200 páginas desse livro, provavelmente você vai ver os escritos mais duros sobre a violência no sistema escravocrata". O gestor ressalta que, entre "legados positivos e negativos" da miscigenação, o lado mais doloroso e problemático (a escravidão e o racismo, por exemplo) seguem sendo "desafios gigantes" na sociedade brasileira contemporânea e ler a obra de 1933 pode oferecer aprofundamento no olhar à formação nacional.<ctk:-30>
O gestor ressalta que, apesar de "Casa-Grande & Senzala" não ser um "livro perfeito", a obra segue tendo forte impacto, principalmente se considerarmos o momento em que foi lançada. "Imagine que, naquela época, a gente estava vendo a ascensão do nazismo, as teorias de embranquecimento da raça sendo impelidas mundo afora, as 'purezas raciais' alimentando ferramentas de desenvolvimento econômico, social e industrial. É a base de sustentação da guerra mundial. 'Casa-Grande & Senzala' nasce exatamente fazendo uma ode à miscigenação". (Renato Abê)

"Impõe o exercício da reflexão e da criticidade"

Antes da publicação da primeira edição do "Casa-Grande & Senzala", Gilberto Freyre dialogou bastante com o fundador do então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) - hoje IPHAN -, Rodrigo Melo Franco de Andrade, através da troca de correspondências, sobre os preparativos do ensaio que este ano chega aos 90 anos.
A Editora Maia & Schmidt colocou o escritor pernambucano no circuito editorial nacional de então. Ele e outros escritores de relevo como Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e Jorge Amado, por exemplo. "Casa-Grande & Senzala" é rico em polêmica. Afinal, Gilberto Freyre é um autor polêmico. As relações interraciais tratadas no seu ensaio mais conhecido foram amenizadas. Contudo, Gilberto Freyre não deixou de denunciar as atrocidades dos senhores e senhoras de engenho diante dos negros escravizados.
No que tange à produção historiográfica nacional, o livro dá destaque às contribuições culturais africanas e indígenas à "formação do Brasil". Apesar das polêmicas em torno do "Casa-Grande & Senzala", não há como negar o seu tom inaugurador aos estudos sociológicos no país. O método empregado na feitura do ensaio de 1933 trouxe à tona o uso dos relatos de viajantes, assim como o pendor literário do texto indicavam uma interpretação até o momento não condizentes aos trabalhos considerados acadêmicos e dotados de rigor científico.
Na atualidade, a obra nos impõe o exercício da reflexão e da criticidade ao destacar as relações sociais de poder e subserviência no País como latências de um racismo velado que devemos combater de forma contundente. A leitura nos ensina como os pormenores (contradições morais, disparidades sociais e violências contra a dignidade humana) de nossa sociedade foram constituídos e como ainda perduram e se manifestam".
Professor doutor Rodrigo Alves Ribeiro, analista da Gestão em Educação Superior da Universidade Estadual do Ceará e Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Ceará. Escreveu a tese "Releve, pois a falta de minhas respostas…: interfaces entre as cartas e os livros de Gilberto Freyre [1933 - 1978].

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