Na Comunidade da Graviola, situada num perímetro que perpassa a rua Gonçalves Lêdo e a avenida Monsenhor Tabosa, cerca de vinte mulheres se reúnem semanalmente na Escolinha da Graviola. Elas trazem consigo anéis, brincos e bolsas revestidas em crochê, macramê e fuxico, enquanto outro punhado de linhas e agulhas estão postos em cima da mesa. O momento antecipa o início de mais uma oficina promovida pelo Artesanato em Rede - Mulheres do Mar, projeto da Rede Cria que busca fortalecer a atuação coletiva das artesãs de Fortaleza.
À medida em que mostram as próprias criações desenvolvidas durante as aulas, algumas das participantes - Adelaide Nunes, de 84 anos; Jaqueline Lima, de 56 anos; Maria das Graças, de 67 anos; Maria Nunes Tavares, de 66 anos; e Romene Ferreira, de 62 anos - falam sobre as experiências que adquiriram na iniciativa. Os relatos partem de diferentes vivências e perfis, mas têm um ponto em comum: todas se consideram mulheres do mar. O termo intitula a nova coleção do coletivo e é inspirado nas histórias que elas guardam da Praia de Iracema, onde muitas nasceram e foram criadas.
As memórias das integrantes estão por trás dos desenhos da coleção “Praia de Iracema, Memória, Afeto e Resistência!” (2022). Nas peças, os pescadores são homenageados em camisetas de crochê, as estrelas-do-mar são representadas em cintos de macramê e a icônica escultura “La Femme Bateau”, do artista Sérvulo Esmeraldo, origina brincos de fuxico. Como pontua Adelaide, os artigos são uma forma de dizer que “ninguém vai tomar o mar da mulher do mar”, visto que são estas referências que dão continuidade à cultura do local.
Os depoimentos resgatam a sensação de ver o quebrar das ondas, sentir a temperatura das águas das “piscininhas” deixadas pela maré e escutar o mar na hora de dormir. Também não escapam da memória as festas carnavalescas, os encontros em botecos e os fogos dos festejos de fim de ano. Esta relação quase intrínseca entre moda e território influencia os novos itens que serão lançados ainda neste ano pela Rede Graviola, marca oriunda do Artesanato em Rede. A nova coleção utiliza como base o trabalho do artista visual e designer M. Dias Preto e está, durante os meses de outubro e novembro, em processo de consultoria e nos primeiros estágios de produção.
“Antigamente, aqui dentro da comunidade, a gente tinha muitos pescadores, campeonatos de surf, muitos projetos. A gente resgatou um pouco de cada coisa no ano passado. Nessa coleção nova, a gente criou uma nova mulher do mar. Hoje está mais difícil a gente se locomover até a praia, tudo mudou, o mar está longe. Mas eu cresci aqui, meus filhos cresceram aqui, o meu quintal é a Praia de Iracema. Cada uma de nós tem um pouco do mar”, afirma a enfermeira aposentada e artesã Jaqueline. Para a coordenadora do projeto, Vivi Façanha, elas são compreendidas como “mestras da cultura” pois “guardam um registro histórico e uma relação de afeto muito grande” com o local.
“É muito legal ver a Praia de Iracema pelo olhar delas, com histórias e memórias tão lindas. Em 2023, elas trazem essas mulheres do mar que se renovam, resistem, que buscam sobreviver e são potentes e criativas”, defende. Ela explica que a Rede Cria busca abrir este caminho por meio de ações formativas, com o intuito que elas alcancem autonomia e possam, também, auxiliar na construção de outras redes criativas. “A gente vai ter oficinas de marketing, com outros designers, e estamos tentando fazer workshops com instituições que já trabalharam em redes para que elas compreendam ainda mais, porque elas já estão conectadas”, complementa.
O plano escolhido pela organização do projeto, com mentorias e oficinas, foi avaliado pelas participantes no Mapeamento Cultural do Artesanato em Rede - Mulheres do Mar, feito com base nas inscrições de 2022 e 2023. 90,9% das integrantes avaliaram como ótimo as atividades, já que possibilitam a capacitação, acesso à cursos e aumento significativo da rede. O documento também aponta que 36,4% das integrantes não se consideravam empreendedoras, mas 100% gostaria de se profissionalizar no empreendedorismo criativo pelo desejo de “ter novas ideias”, “entender mais sobre negócios” e “vender as peças”.
Outros pontos benéficos mencionados foram a convivência com as companheiras e o crescimento da autoestima. “Nosso sonho é ter a própria sede, quem sabe dentro da comunidade. A gente está crescendo, vamos aperfeiçoar ainda mais e com mais mulheres. A Rede Graviola é um filho nosso, que a gente vai criar. Eu digo que é um coletivo, mas ao mesmo tempo é uma família. É igual casamento”, Jaqueline ri ao falar e explica: “Estamos juntas na doença, na saúde, na riqueza, na pobreza, nas dificuldades... A gente se diverte, se sensibiliza e se abraça”.
Depoimentos
"Aprender e agradecer"
"Comecei no projeto ano passado, me identifiquei muito com as meninas. Estou aqui novamente tendo mais conhecimento, a gente está aqui para aprender e agradecer. Tudo que eu sei até hoje foi pelo projeto. Cada vez a gente aprende mais e revê todas as amigas, o que é muito importante"
Maria Nunes Tavares
“Muito gratificante"
“É muito gratificante estar aqui porque a gente cria novos laços. Quando você se aposenta, sente falta da rotina. É muito bom vir para cá, ter novas amizades. Você vende um fruto seu e sabe que a pessoa gostou, é muito bom, além da renda extra. Espero que o projeto continue”
Romene Ferreira
“O que sou capaz”
“Me interessei e falei: ‘vou entrar para ver o que eu sou capaz de fazer”. Entrei para dar uma olhadinha e ver o que é, gostei demais da professora, das companhias também. Tenho 84 anos e não quero saber de ficar em casa, quero ficar aqui com elas, precisa passear e de muita conversa”
Adelaide Nunes
"Novas possibilidades"
"Moro na comunidade há mais de 45 anos e aprendi artesanato muito nova. Sou enfermeira aposentada, mas precisei me afastar do trabalho por problemas de locomoção. Saí de uma síndrome do pânico quando comecei neste projeto, também foi uma oportunidade que eu tive de aumentar minha renda extra. Nós fomentamos a nossa família, criamos este coletivo e é uma maravilha estar aqui criando. A gente tem que estar correndo atrás de projetos novos, novas possibilidades. Me aperfeiçoei muito no que eu não sabia em todas as edições, não quero parar".
Jaqueline Lima
“Melhora nossa mente"
“Todo mundo é bacana e assim a gente vai levando. Sempre fiz artesanato, gosto muito de ver novelas para ter inspiração. Sempre procurei esses cursos, a gente melhora nossa mente, fica mais hábil e perde os medos. A gente tem que viver, procuro sempre estar alegre para não acontecer nada”
Maria das Graças
Números
Entre as participantes da rede:
72,2% já participaram de alguma feira criativa produzida na Capital.
18,2% têm a Carteira Nacional do Artesão, que formaliza a atividade.
100% gostariam de se considerar uma empreendedora criativa.
100% afirmam que atividades relacionadas ao artesanato aumentam a autoestima.
72,7% vendem as peças em algum lugar, enquanto 27,3% ainda não comercializa.
* Dados coletados do Mapeamento Cultural - Artesanato em Rede - Mulheres do Mar, realizado pela Rede Cria.
Laços em rede
Criada em 2019, a Rede Cria atua no estímulo das "habilidades criativas" de cidadãos fortalezenses por meio de planejamentos nos âmbitos da cultura e infância; patrimônio; educação; fomento à economia solidária e redução das desigualdades de gênero. Ao todo, mais de 352 pessoas já foram atendidas durante os quatro anos.
Uma das vertentes é o projeto "Artesanato em Rede - Mulheres do Mar", implantado em 2020 com a finalidade de "fomentar o empreendedorismo feminino e fortalecer a atuação em rede" das artesãs cearenses. Os propósitos envolvem a redução das desigualdades de gênero e a inserção produtiva destas profissionais na indústria criativa municipal.
"Hoje a gente vê um aumento na renda da vida das mulheres, nossos parceiros são as lojas colaborativas Baba Lab e a Colabora. A gente pensou em toda uma metodologia muito perto da realidade, o nosso objetivo é que elas tenham autonomia total e a cada ano a gente nota um grande avaço", pontua a coordenadora do projeto, Vivi Façanha.
Com a coleção "Praia de Iracema, Memória, Afeto e Resistência!" e a criação da marca Graviola, as artesãs atingiram trabalhos em equipamentos culturais da Capital, integraram passarelas em desfiles e participaram de exibições em eventos. A maioria também alcançou a comercialização das peças e a aquisição da Carteira Nacional do Artesão, documento que formaliza a atividade artesanal.
Em outubro, o projeto finalizou a oficina de Ateliê Criativo com a consultoria da designer, artesã e restauradora Joana Gurgel. O ano de 2023 também marca o patrocínio da FARM e do Instituto Precisa Ser, além de parceria com as instituições Fortaleza Criativa e Unesco. "A gente está vendo o trabalho da Rede Cria se consolidando e se multiplicando. No futuro, a gente quer que a Graviola vire um polo", complementa.
Os próximos passos da almejada expansão são traçados com o Mapeamento Cultural do Artesanato em Rede - Mulheres do Mar, oriundo de pesquisa feita com inscritas dos anos de 2022 e 2023. Entre os números (alguns estão destacados no quadro ao lado), há evidências de que o artesanato feminino em rede fortalece a autoestima e impacta a vida financeira destas mulheres. Os dados, inclusive, também transparecem os desejos das participantes: as respostas mostram o ânimo para a idealização de outras coleções e, consequentemente, a expansão do conhecimento.
Artesanato: arte popular, memória e patrimônio
Artesanato, artesã e artesão podem se referir a saberes, modos de fazer, práticas em condições muito diversas entre si. Vamos por caminhos mais específicos, olhando para experiências que possam nos fazer ver a complexidade do campo.
Se falamos em rendas e rendeiras, por exemplo, a renda bordada ou o bordado rendado de nome labirinto em Canoa Quebrada, em Aracati, ou a renda de bilro no território Tremembé da Barra do Mundaú, em Itapipoca. A diferença não está só na tipologia, no modo de fazer (renda de agulha no caso do labirinto e a chamada renda de almofada). Encontramos mulheres Tremembé vestindo a renda como afirmação étnica. Na política, nas práticas da religiosidade, na educação escolar, mulheres estão à frente na organização e tomada de decisões da vida Tremembé. Lideranças nos dizem de crianças e jovens sabem fazer renda.
Em 2017, comecei a escutar rendeiras em Canoa Quebrada. Só encontrei, dentre as que fazem labirinto no dia-a-dia, mulheres acima de 45, 46 anos. Podemos nos perguntar sobre transmissão de saberes. O que pode nos fazer pensar sobre como os processos sociais incidem sobre nossas vidas no cotidiano. Canoa e a Barra do Mundaú têm históricos de ocupação e uso do território muito diferentes. Nos dois casos, com dificuldades na produção e comercialização da artesania, lembrando-nos que a precariedade das condições de trabalho vem se construindo há anos. Em Canoa, homens também faziam renda. Quando o mar não dava peixe, a chamada ‘seca’ do mar, homens trabalhavam na renda. As mulheres haviam repassado o saber para eles. O labirinto era um serviço do ano inteiro. De certo modo, dava sustentação à vida do lugar.
Se pensarmos na teia artesanato, arte popular, memória e patrimônio, um entendimento primeiro seria que são compreensões pactuadas em sociedade. O trabalho da imaginação e do pensamento, modos de vida de quem produz artesanalmente – vale também para quem produz nosso alimento: vem da agricultura familiar, uma escala artesanal, a maior parte da nossa alimentação - o papel das políticas públicas, o trabalho de instituições e agentes que estudam, pesquisam, as relações com públicos etc.
O Ceará tem exemplos fortes que podem render boas perguntas sobre como lidamos com o tema. Logo nos primeiros anos da atual UFC, acervos de produção artesanal e arte popular são constituídos, pensados como bens públicos. Refiro-me à coleção de rendas hoje abrigada na Casa José de Alencar e à invenção do Museu de Arte da UFC, o Mauc. Dá para pensar a partir do ‘mundo feito a mão’ várias questões que nos dizem respeito como sociedade. Gênero, por exemplo. Por que dizemos com tanta ‘naturalidade’ vila de pescadores e quase nunca vila de rendeiras, mesmo sabendo que, como diz o ditato, ‘onde tem rede (de pesca), tem renda’?
*Ponto de vista escrito pela jornalista, cronista e pesquisadora Izabel Gurgel
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